Mil novecentos e oitenta e quatro

George Orwell nasceu juntamente com suas obras: o pseudônimo de Eric Blair (baseado num nome tipicamente inglês acompanhado por um sobrenome que designa um rio na Bretanha) foi inventado para que seu primeiro livro, Down and out in Paris and London, pudesse ser lançado com o máximo de discrição. A família Blair era de uma alta classe decadente que, apesar de não viver mais na abastança de seus antepassados, ainda tinha um nome e um certo orgulho a zelar (Orwell mesmo dizia que cresceu naquele mundo meio crepuscular em que ele e suas irmãs sabiam montar, mas não tinham cavalos, sabiam as etiquetas, mas não iam a restaurantes caros). As aventuras de um rapaz desgarrado de sua classe, lavando pratos em hotéis e amargando um perigo de fome constante, portanto, não era algo que os Blair gostariam de subscrever. Desse modo, eis que, em 1933, aos 30 anos de idade, nascia George Orwell.

Orwell, que morreu em 1950 em decorrência de uma doença pulmonar, é imensamente famoso por suas duas últimas obras: A revolução dos bichos (1946) e Mil novecentos e oitenta e quatro (1949). O primeiro, uma fábula de tom condenatório sobre o regime stalinista, contém uma mensagem que o autor, como sua correspondência demonstra, já imaginava poder ser mal-interpretada: ainda que tencionasse ser uma voz contra o totalitarismo, seu destino tem sido muitas vezes o de panfleto contra o comunismo. Assim como Mil novecentos e oitenta e quatro (que o autor escrevia assim mesmo, por extenso), uma crítica ainda mais encorpada aos regimes autoritários nascidos de revoluções bem-intencionadas. Vale lembrar que Eric Blair abriu mão de seus privilégios de classe, viveu anos entre os mineiros e os lumpenproletários no norte da Inglaterra, além de ter lutado pelo partido marxista na Guerra Civil Espanhola até que um tiro de fora a fora na garganta o botou de cama: ele nunca foi anti-comunista e até o fim da vida declarou que acreditava no socialismo democrático. 

É em Mil novecentos e oitenta e quatro que o pensamento orwelliano se articula em seu ponto mais elaborado de ficção e filosofia. Com uma mensagem claramente marxista (nada mais marxista que enxergar a única saída na sublevação dos proletários) marcada por um profundo pessimismo (o livro foi escrito em meio à fumaça do pós-guerra, e consumiu as últimas energias de um Orwell viúvo, que lutava contra a tuberculose havia anos), a história de Winston Smith contra a onipotência do Grande Irmão conta com a caneta de um grande ficcionista para se fazer transmitir. 

Ainda que Harold Bloom considere Mil novecentos e oitenta e quatro um “bom livro ruim”, que se salva pela relevância e não pela qualidade, é inegável que a ficção de Orwell atinge altíssimo quilate em alguns momentos: como esquecer o ambiente e a atmosfera do quartinho alugado em cima da loja do Sr. Charrington para os encontros com Julia? Como não sentir a existência de personagens secundários como Parsons ou Syme, identificá-los como tipos que poderíamos muito bem conhecer? Para Bloom, “what Max Horkheimer and T. W. Adorno grimly called the Culture Industry has absorbed Orwell, and his 1984 in particular.” Nem seria necessário rebater o diagnóstico de Bloom, já que os anos o provaram equivocado e Mil novecentos e oitenta e quatro vezes sem conta cruzou a linha do panfleto político em que Bloom o inscreveu (ou mesmo a de sátira, como o próprio Orwell se referia à história de Winston). Mas há dois pontos interessantes que talvez sejam esclarecedores: para o mesmo Adorno, não se pode depreender o essencial, se não do que emerge do objeto. É vazio falar “da essência” se essa essência não se evidencia nos fenômenos. E se os fenômenos indicam que a obra máxima de Orwell atingiu o status de pop icon absoluto, haja vista a enxurrada de objetos e agentes culturais que dela derivam ou fazem uso, talvez o termômetro de Bloom que marca Mil novecentos e oitenta e quatro como “neither superb nor unreadable” esteja desajustado. Ainda com base na análise de Adorno, podemos dizer que Bloom parece aplicar seu método indiscriminadamente para chegar a resultados inúteis: mais de 70 anos de sua publicação e 35 anos depois das análises do crítico, Mil novecentos e oitenta e quatro continua sendo lido essencialmente como uma obra-prima, não como um “bom livro ruim”. O que por si só prova que Orwell é muito mais profético que Bloom.

Claro que esse sucesso se deve mais ao universo imaginado por Orwell que ao plot em si (a primeira parte do livro é basicamente sobre Winston indo para casa almoçar). Porém, como dizia Asimov, há dois aspectos igualmente importantes na ficção científica: o enredo e a sociedade imaginada. Se o enredo de Mil novecentos e oitenta e quatro não é exatamente inovador (do que eu, sinceramente, discordo: o destino de Winston, Julia e toda a Oceania é tão amargamente pessimista que até hoje as mais elaboradas distopias conseguem apenas tangenciar tanto desatino), é impossível não reconhecer naquele mundo de teletelas e Ministérios do Partido a mais icônica sociedade distópica já produzida pela literatura. 

Comentamos brevemente, a seguir, algumas das mais representativas noções de Orwell, verdadeiras instituições do pensamento político do século 20, contidas no universo de Mil novecentos e oitenta e quatro.

Duplipensar (doublethink) – manter duas ideias contraditórias no cérebro e acreditar nas duas. Lógica evidenciada no próprio lema do Partido (“Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”), me pareceu um mero elemento de ficção numa primeira leitura, mais de 15 anos atrás. Hoje, no entanto, quando as pessoas parecem capazes de declarar fidelidade, ao mesmo tempo, a Bolsonaro e a Jesus Cristo, opostos diametrais, Orwell me parece mais e mais profético. “Um vasto sistema de logro mental”, o duplipensar é um mecanismo sofisticado em que se treina o instinto. Ele é usado à exaustão no pensamento religioso. De que outra maneira se pode acreditar na literalidade de Adão e Eva ou do dilúvio, por exemplo, estando em posse de evidência científica de que são eventos impossíveis? Através do duplipensar e do breca-crime (outro mecanismo orwelliano: é a trava mental que se instala antes que um pensamento herege assome). Essas técnicas são a base das religiões proselitistas, e são promovidas em nome da fé e da pureza. O duplipensar também é a base da propagação do pensamento neoliberal: sabemos que o planeta está sendo devastado pela lógica capitalista, mas acreditamos no capitalismo como o único sistema de produção possível. 

Novafala (newspeak) – a navalha de palavras e sua função de navalha de pensamentos. Syme, colega de Winston, em certa altura da história, afirma que o encolhimento do vocabulário da Novafala tem o objetivo de tornar impossível o pensamento-crime, já que sem as palavras certas ele se tornaria impossível. O sucateamento da educação tem o mesmo papel na sociedade (econômica e filosoficamente) neoliberal em que estamos emboscados: as camadas trabalhadoras, sem as ferramentas mentais certas, não são capazes nem de entender sua posição no tabuleiro social, quanto mais de reivindicar mais direitos e igualdade. Assim, como pensava Winston, em concordância com o mais clássico dos marxismos – a saída positiva de Lukács -, se os proles são a única salvação, eles simplesmente restam inertes em sua educação tecnicista e muitas vezes defendem os interesses das classes dominantes sem se dar conta disso. 

Dois minutos de ódio – uma versão muito sórdida do bom e velho pão e circo, os dois minutos de ódio promovidos pelo Partido, aqueles dois minutos catárticos de êxtase coletivo, são uma ótima representação de outras formas de direcionamento utilizadas à exaustão nos âmbitos político e religioso: o inimigo é o comunista, o McDonald’s, o Judas, o demônio, os gays. Até nas mais inocentes formas de entretenimento essa catarse de alienação se insinua, e não raro vemos palmeirenses e corintianos se espancando, ao fim de um processo de construções sociais que, desfeitas as camadas, revelaria apenas um jogo de crianças com bola: nada pelo que valha a pena morrer, descontado o fetiche. De que maneira essa energia é utilizada para que as relações de poder se mantenham? Da mesma maneira que o Partido o fazia. 

A guerra perpétua – em Mil novecentos e oitenta e quatro, a guerra é representada como um meio de destruir os bens que de outra maneira seriam consumidos para o conforto das classes inferiores (que devem ser inferiores, através da ignorância), a fim de que exista uma classe dominante. Hoje, no Brasil, talvez não possamos falar exatamente sobre uma guerra, mas existe, por exemplo, a guerra perdida contra o tráfico, que movimenta bilhões e não tem vitória possível (a única saída seria a tributação, mas há barreiras morais  – moralistas – intransponíveis). Sem contar que, em qualquer dado momento, há uma guerra acontecendo em algum lugar do mundo em que incontáveis recursos naturais são investidos em troca de nada (a não ser a manutenção do status quo): a guerra é uma indústria da subtração e Orwell faz, através da voz de Goldstein e seu famoso Livro, uma análise simples e transparente dessas relações. 

Verdades e mentiras – as narrativas reformadas do passado e do presente, a troca constante de inimigos (a Lestásia, então a Eurásia: os três superestados imaginados por Orwell em mútuo ataque), a negação da realidade objetiva através do argumento solipsista para sustentar as reinterpretações mais convenientes do passado. “O passado não tem existência objetiva e é tudo aquilo que o partido deseja”. Afirmação estranhamente familiar, em tempos de fake news, terraplanistas e saudosistas das ditaduras. 

O controle da vida pessoal – teletelas, polícia do pensamento e total controle sobre o corpo e a mente: o objetivo do Partido, de acordo com as declarações de O’Brien durante as sessões de tortura de Winston, é o poder pelo poder. O poder não é um meio, ele é um fim em si mesmo, e a própria razão de ser do Partido. Como exercer esse poder se não através do domínio total dos seres humanos? A maneira como Orwell constrói esse poder é ponderada desde o início: nada funciona na Oceania. Logo no primeiro capítulo ficamos sabendo que nem uma lâmina de barbear pode ser adquirida sem grandes contratempos. A indústria em farrapos não produz sequer uma barra de sabão de qualidade, mas a polícia do pensamento,  por outro lado, funciona como um relógio suíço. É a única coisa que funciona nessa universo, e como funciona: é a sociedade panóptica de Bentham e Foucault em sua mais monstruosa representação. Assim como esses muito reconhecíveis estados religiosos em que falha a liberdade, falham as instituições, falham as instâncias criadoras de tecnologias, mas não falham os controles sobre a intimidade das pessoas.

Ainda que se possa dizer que, filosoficamente, o totalitarismo de Huxley tenha triunfado sobre o de Orwell (e isso realmente faz sentido: nos últimos 15 anos as pessoas aprenderam a se acorrentar num hedonismo virtual onipresente, ansiosa e voluntariamente), é indiscutível que a dissecação do poder e da natureza humana proposta por Orwell segue atual. 

Obs.: Os dados biográficos mencionados neste texto foram retirados de George Orwell – biografia intelectual de um guerrilheiro indesejado, de Jacinta Maria Matos. Publicado pela Edições 70, Portugal, em janeiro de 2019, o belo volume de 439 páginas é um percurso esclarecedor pela mente de um dos mais influentes artistas do século 20. A autora, especialista em Orwell, se baseia em toda a obra do escritor e em muito material sobre ele para traçar sua linha do tempo intelectual. O panorama final é luminoso e a leitura é muito gratificante (o português europeu, no fim das contas, conferiu um sabor a mais à experiência). 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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