Matadouro-cinco

– Foi necessária – disse Rumford a Billy, referindo-se à destruição de Dresden.
– Eu sei – retrucou Billy.
– A guerra é assim.
– Eu sei. Não estou reclamando.
– Deve ter sido um inferno para quem estava em solo.
– Foi. – Confirmou Billy Pilgrim.
– Tenha piedade de quem precisou fazer isso.
– Eu tenho.
– Você deve ter sentido emoções confusas, ali no solo.
– Foi tudo bem – ponderou Billy. – Tudo está sempre bem e nunca há problema algum, e todos têm que fazer exatamente o que sempre fazem. Aprendi isso em Tralfamadore.

Um clássico da ficção-científica antiguerra, Matadouro-cinco conta a história de Billy Pilgrim, um soldado americano (na verdade ele era assistente do capelão de um pelotão – ???) combatendo na Segunda Guerra Mundial. Billy é capturado pelos alemães e se vê prisioneiro de guerra, ocupando um lugar num matadouro desativado, mais especificamente, no número cinco. Esse matadouro estava localizado em Dresden, cidade que foi brutalmente bombardeada pelos Aliados em fevereiro de 1945 (os relatórios acerca das mortes variam muito, indo de cerca de 22 a 500 mil baixas).

Billy e seus companheiros de prisão sobrevivem ao ataque e ainda são obrigados a trabalhar nas “minas de cadáveres” (ou seja, escavar Dresden para queimar os cadáveres que ainda restavam e estavam apodrecendo). Finalmente Billy é resgatado e levado de volta para Ilium, Estados Unidos. Depois de se recuperar, herda de seu sogro sua clínica, e se torna um optometrista, casado com Valencia, e pai de Barbara. No meio de tudo isso, Billy é capturado por uma raça de alienígenas, os tralfamadorianos (que veem o tempo em dimensões – parecido como nós entendemos os conceitos de altura, e largura – guarda essa informação que vai ser importante). Lá em Tralfamadore, ele é colocado em uma jaula de zoológico, junto com uma atriz de cinema muito gata, e devem copular para agradar os espectadores tralfamadorianos. Billy, então, resolve primeiro conquistar a atriz para que ela queira transar com ele, e de fato, os dois se apaixonam e têm filhos no zoológico de Tralfamadore. 

A questão é que tudo isso que está mais ou menos organizado em uma linha temporal, é apresentado no livro por meio de viagem no tempo: em todos os momentos que o protagonista Billy Pilgrim está em uma situação de dor extrema/trauma, ele viaja no tempo e no espaço, e de repente sai do campo de batalha na Europa em 1944 e se vê em Ilium na sua infância, ou sai de um hospital para veteranos de guerra e se vê em Tralfamadore. 

Vonnegut faz uso engenhoso desse recurso do gênero de ficção científica para expor o horror da guerra e os traumas psicológicos com os quais muitos sobreviventes desses conflitos convivem. Isso porque o próprio Kurt Vonnegut foi soldado americano na Segunda Guerra, ficou preso no matadouro-cinco e sobreviveu ao bombardeiro de Dresden  – inclusive Vonnegut é um personagem secundário na obra. O autor conta que por cerca de 20 anos tentou escrever um livro de guerra, uma descrição detalhada do que de fato aconteceu, porém sem sucesso, uma vez que mesmo na chave da ficção realística não parece ser possível descrever o terror de uma guerra. Assim, a saída encontrada por ele para escrever sobre o trauma foi a ficção científica, uma vez que no livro – e por que não na vida? – a viagem no tempo (mesmo que psicológico) é usada como estratégia para ser capaz de seguir a vida pós imenso sofrimento. Como Billy Pilgrim, por sua intensa convivência com os tralfamadorianos, era capaz de perceber o tempo de maneira multidimensional, todos os horrores de viver acabavam sendo relativizados, uma vez que, num todo, sempre estamos bem em algum lugar (uma vez que não há passado, presente ou futuro), tudo acontece exatamente como deveria acontecer e todos fazemos exatamente o que deveríamos fazer. 

Relacionada a isso há outra estratégia de Vonnegut, a qual causa estranhamento, mas leva à reflexão: o bordão “é assim mesmo” (so it goes, no original) que aparece uma centena de vezes no livro, especialmente em momentos que o narrador está contando algum acontecimento cruel. Quase como um bordão satírico para o grotesco da humanidade, da banalidade da vida e da morte, muito devido ao que foi testemunhado pelo autor durante a guerra.

A relação entre ficção científica e guerra é latente no texto de Vonnegut, mas não só ele, muitos outros grandes da ficção passaram pelos horrores da guerra e encontraram o escape na escrita: J. R. R. Tolkien foi médico veterano da Primeira Guerra (apesar de Tolkien jurar de pé junto que a obra dele não tem nada a ver com o que ele passou na guerra…), Arthur C. Clarke, autor de 2001: uma odisséia no espaço, foi veterano da Segunda Guerra, e Robert Heinlein, autor de Tropas estrelares, era membro da Marinha americana e também participou da Segunda Guerra. Coincidência ou não, consciente ou inconscientemente, fato é que o boom da ficção científica no período pós-guerra é real, e que, numa leitura atenta, sempre podemos relacionar de alguma forma o que parece fantástico, ou irreal, com a nossa realidade diária.

Uma obra antiguerra, lançado em 1969 – em plena guerra do Vietnã, diga-se de passagem – o livro foi banido em alguns estados dos Estados Unidos, queimado na Dakota do Norte e descrito como “depravado e anticristão” pelo conselho escolar de Nova York. É uma leitura imprescindível, não só pela genialidade da escrita de Vonnegut, mas também pela temática, uma vez que em tempos de crueldade, um livro antiguerra é sempre necessário. 

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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