A origem dos outros – Seis ensaios sobre racismo e literatura

Este livro bonito e breve é baseado em uma série de palestras que Toni Morrison, ganhadora do Nobel de literatura, ministrou em Harvard no ano de 2016 – ano em que Donald Trump é eleito nos Estados Unidos, vale lembrar, atrasando em décadas o acerto de contas do povo americano com sua longa história de escravidão e racismo. Até os promissores anos de Barack Obama, parecia que o caminho estava sendo trilhado; quando Trump é eleito, a realidade mostra que a trajetória humana é, infalivelmente, repleta de trancos e retrocessos.

Morrison fala sobre sua própria experiência com a elaboração íntima de um conceito de alteridade, a que ela chama de “outremização” (correspondente aos termos othering ou otherness, em inglês). Ela ainda era criança, conforme relata, quando sua bisavó a viu pela primeira vez, uma menina de pele mais clara, e a acusou sumariamente: criança adulterada. É a partir dessa percepção da diferença que Morrison formula sua noção de Outro, através da qual fará a crítica tanto da crônica eugenista mais repulsiva quanto de autores consagrados como Ernest Hemingway, William Faulkner e Harriet Beecher Stowe, por exemplo.

Ao observar a história da Europa e a invasão da América entre os séculos XV e XIX, é fácil notar que a ideia de um Outro dito inferior permite ao branco formular sua branquitude e superioridade, bem como exercer seu sadismo no seio de sua religião – esta última sempre justificando a outremização, a diferença, o “nós”, os “escolhidos”.

“Se uma surra demorada cansa quem açoita, e a pessoa precisa de uma série de pausas para poder prosseguir, de que serve a duração para o açoitado? Essa dor extrema parece destinada ao prazer de quem segura a chibata.” (p. 53) A denúncia é clara e certeira: a escravidão nunca enobreceu ninguém; a imagem do velho sábio escravizado ou do senhor branco cristão que aprende com essa sabedoria são criações perversas de uma imaginação que distorce o terror do fatos. A escravidão negra foi aviltante para todos (e não há notícias de crianças se divertindo nos porões dos navios negreiros, vale dizer, diante da recente polêmica que envolveu um livro infantil editado pela Companhia das Letras – curiosamente, a mesma editora que publicou A origem dos outros no Brasil).

Roger Casement, enviado do parlamento inglês para investigar denúncias de violência extrema nas colônias espanholas no século XIX, registrou em seus relatórios cenas de tortura e terror físico que não ouso reproduzir aqui. Michael Taussig, antropólogo australiano, autor da obra Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem, a partir dos relatos de Casement, chega a afirmar que, além da borracha, o principal produto das colônias amazônicas era a pura violência aplicada ao corpo do indígena. Na maioria das vezes, mais por diversão do que pela punição em si (exatamente como Morrison percebe a situação do castigo físico que dá prazer a quem segura a chibata). As ditaduras chilena, argentina e brasileira também não ficaram atrás no quesito sadismo (há um mar de documentos que atestam essa feia verdade) e, se há alguma dúvida de que ainda estamos no meio de um górdio nó moral da outremização, basta ver que o atual presidente do Brasil (um reles “Trump dos trópicos”) repetidamente presta homenagem a um infame torturador e, ainda assim, foi eleito e segue governando com grande apoio de uma parcela entusiástica, ainda que pouco ilustrada, da população.

As reflexões propostas por Morrison continuam urgentes e universais, infelizmente.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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