Bacurau

Crítica social, ficção científica, terror-faroeste, distopia cabocla: thriller nordestino de difícil classificação, também pode ser lido como uma sátira e como uma homenagem a grandes tradições do cinema, já que há detalhes remissivos plantados aqui e ali durante toda a projeção. A montagem com aquelas transições wipe, por exemplo, tão estranhas num primeiro momento, mas tão facilmente aceitas depois da constatação da estranheza mesma do filme, deixam transparecer um certo deboche – que mais tarde na narrativa vemos se escancarar na forma de decapitação coletiva nos degraus da igrejinha, ou no desenrolar de um bizarro safari humano liderado por uma versão alemã do general Zaroff (The most dangerous game, 1932). Ou, ainda, certas escolhas: a escola municipal João Carpinteiro servindo a uma cena bem à la John Carpenter, aparecendo como um tributo aberto no clímax sangrento dos conflitos apresentados.


Diante dessa profusão de referências, fica tão difícil comentar o novo filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles quanto colocá-lo numa caixa de gêneros. A Wikipedia, por exemplo, logo de saída já o carimba como um weird western, whatever that means. Com uma aprovação de 88% no Rotten Tomatoes e um Jury Prize em Cannes, a verdade é que Bacurau é uma produção difícil de ser ignorada. 


Desde os primeiros segundos da abertura, com Gal Costa cantando Não identificado enquanto uma cena em CGI arremeda um satélite em tomada ultra-aérea em zoom-in, lentamente colocando o sertão pernambucano no mapa (coisa que depois conversa com um elemento essencial da trama: o desaparecimento de Bacurau, essa cidade fictícia e arquetípica, do mapa), somos atingidos por um estranhamento agradável. Em seguida, somos situados, através de uma breve legenda, “alguns anos no futuro”. Apesar disso, além dos smartphones ultramodernos que os snipers carregam, logo verificamos que nada há de realmente futurístico naquele universo. O que nos leva a pensar no por quê dessa escolha. Talvez por postular um cenário político cada vez mais distópico? Ou talvez porque o futuro cada vez mais lembra o passado? Os próprios diretores afirmam que “Bacurau é um filme sobre resistência”, então a chave da alegoria política pode ser a mais adequada para pensarmos esse verdadeiro alien do cinema brasileiro. 


O personagem Michael, interpretado por um Udo Kier perturbador desde a primeira cena, pode ser visto como drama em si mesmo e também como parábola da visão colonialista do milênio passado: visão que ainda nos persegue e que tem, recentemente, dado mostras de vigor renovado nesse nosso Brasil cujos políticos, assim como Tony Jr.,  insistem em nos vender como carne de abate. Os europeus, que se acharam no direito de pilhar o resto do mundo por séculos, em Bacurau mais uma vez fazem dos trópicos o seu parque de diversões e há algo de muito reconhecível nisso – infelizmente. Aqui, também, a estética da pobreza é elemento funcional na trama: a divisão entre nós e eles, os humanos e os sub-humanos. (Não podemos esquecer que os sacerdotes católicos se reuniam em seus concílios para deliberar e definir se os índios tinham alma ou não.)


Em contrapartida, temos um incomum protagonista coletivo no povo de Bacurau, cidadezinha isolada pela geografia e pela falta de água, onde até os fora-da-lei podem viver sem grandes problemas com as autoridades. Chegamos ali na boleia de um caminhão-pipa atravessando estradas esburacadas e tiros para o alto. Se no primeiro ato somos levados a pensar que Teresa nos conduzirá pela trama e será responsável por encontrar resoluções para o conflito posto (afinal, ela tinha uma mala de remédios logo de cara), no final percebemos que fomos despistados e que ela era mais um par de olhos naquele caminhão-pipa atropelando caixões, rumo a um funeral, antecipando a carnificina por vir. Somos novamente despistados quando Domingas, personagem da maravilhosa Sonia Braga, aparece espalhafatosamente no velório de Carmelita: nem Domingas é a louca da cidade, nem Carmelita tem função relevante na história.


O psicotrópico sertanejo, o cangaceiro afeminado Lunga, a televisão anunciando execuções públicas: poderíamos enfileirar dezenas de ingredientes que fazem de Bacurau uma experiência tão insólita quanto um disco voador no sertão pernambucano. Como experiência estética, talvez seja uma questão de gosto (como é tudo, afinal); como alegoria política, é um produto brasileiro impecável – tipo exportação.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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