Belo belo

“Como o rio as nuvens são água”, diz Manuel Bandeira no sexto verso do poema O rio, publicado em 1948 no livro Belo belo. Um verso desses nos faz lembrar de por que gostamos de poesia.

A poesia, quando manejada com inspiração e respeito, joga uma luz diferente sobre o óbvio e nos concede um entendimento novo sobre algo, seja esse algo um fato, uma palavra, ou um aspecto da existência ou da linguagem. Dessa maneira, ela pode revelar relações que se oferecem ao leitor através do óbvio reiluminado. E aqui vai o mais bonito: a boa poesia faz isso conjugando intelecto e emoção. Uma famosa definição de Coleridge é aquela de que poesia é “emotion recollected in tranquility”, algo como “emoção recordada na tranquilidade” – apesar de que no inglês o verbo “recollect” evoca também “reunir, juntar novamente”, o que definitivamente empobrece a tradução.

Todos sabemos que rios são de água e que nuvens são de água. Sabemos desde a primeira série ou talvez antes. Porém, vem a poesia num verso bem composto e pinta uma tela inteira: vemos o rio, as nuvens refletidas no rio, água refletindo água, água correndo por baixo da água que corre por cima, e entre essas duas linhas paralelas todo o drama humano, alheio ao fato fantástico de que nuvens e rios são fundamentalmente a mesma coisa. É sempre difícil explicar a experiência poética, ou o “fato estético” postulado por Borges, que não passa de uma iminência. Mas a boa poesia permite essa experiência ao leitor. Por um instante, sentimos “o pasmo essencial que tem uma criança que, ao nascer, reparasse que nascera deveras”, nas palavras de Caeiro. Vemos o mundo novamente, para além dos nossos cristalizados processos rotineiros, e por um segundo notamos – ou pelo menos intuímos – o espetáculo complexo e incompreensível que se desdobra diante de nós.

Manuel Bandeira fazia isso bem demais, e por isso até hoje é um dos maiores que já ousaram fazer poesia em língua portuguesa. Confiram a íntegra do poema na página abaixo, retirado da edição de 2014 da editora Global. O livro foi uma cortesia da editora, recebida em 2022.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *