O império e a literatura de John Grisham

Os livros de John Grisham são impossíveis de largar. Seus enredos sempre propõem um nó jurídico envolto em muita ação advocatícia, nos moldes da justiça norte-americana em seus aspectos mais hollywoodianos, e apresentam protagonistas parecidos entre si mas facilmente reconhecíveis entre as multidões de personagens de thrillers: os heróis de Grisham são quase sempre homens de seus trinta ou quarenta anos, brancos, advogados ou professores de direito, relativamente bem-sucedidos, imersos na cultura estadounidense até o ponto de serem treinadores do time mirim de baseball, por exemplo, e se veem às voltas com um dilema jurídico e moral que os colocará em alguma corrida contra o tempo.

Certamente existe uma fórmula por trás da obra do ex-advogado e ex-deputado democrata do Mississippi. Uma rede de personagens que servem como peças num tabuleiro de eventos será colocada em movimento e percorrerá os marcos do enredo, um momento de suspense após o outro, em capítulos curtos e diálogos rápidos, tendo como pano de fundo grandes cidades dos EUA. Tudo do jeito como deve ser, de acordo com os manuais americanos de escrita criativa. O diferencial de Grisham é que ele tem uma ótima percepção de que detalhes escolher (e talvez aí resida a chave de grande parte da arte, afinal: quais detalhes escolher) e suas histórias têm sabor. Simples assim. Os livros de Grisham são muito gostosos de ler e, quando adaptados para o cinema, também se tornaram filmes excelentes. “Tempo de matar”, com Matthew McConaughey, “O Dossiê Pelicano”, com Julia Roberts e Denzel Washington, “O júri”, com John Cusack e Rachel Weisz: os exemplos se multiplicam e estão espalhados pelas plataformas de streaming, prontos para oferecer duas horas de bom entretenimento.

E eis um detalhe importante sobre o qual vale a pena refletir: Grisham já vendeu mais de 350 milhões de livros no mundo inteiro. São 28 campeões de venda consecutivos. É óbvio que números não traduzem qualidade literária, mas quando falamos sobre quantidades absurdamente massivas, temos que nos deter um minuto no que isso representa, já que saímos do terreno da literatura para entrar no igualmente complexo terreno dos fenômenos sociais. Poucos acadêmicos dissecadores de literatura conseguiram escrever best-sellers absolutos (me vem à mente Umberto Eco), o que certamente é um indicativo de que há mais fatores que “boa literatura” alinhados no nascimento de fenômenos como Grisham, Stephen King, Dan Brown ou J. K. Rowling. E há muito mais que a simples aplicação da fórmula, claro. Há o imponderável da arte. Assim não fosse, o primeiro editor que leu os manuscritos de A pedra filosofal teria fechado negócio e mandado imprimir milhões de cópias para o glorioso dia seguinte, mas sabemos que Rowling foi rejeitada por nada menos que doze editoras antes de vender os direitos para a Bloomsbury.

Outro detalhe que me agrada na obra de Grisham é que ele sempre tenta dissecar os meandros do poder de maneira a desmascarar os interesses das grandes corporações. Alguns de seus livros chegam a ser de um maniqueísmo flagrante, como O recurso, ou mesmo O Dossiê Pelicano, thrillers em que bilionários todo-poderosos brindam mortes de inocentes do alto de seus iates. Mas o fato é que, se você parar pra pensar, há mesmo algo de muito perverso na ambição de amealhar um bilhão de moedas em meio ao caos de miséria que é o planeta Terra. Escrevendo do coração do império, Grisham não deixa de fazer suas denúncias, muito bem tecidas na forma de obras de arte pop. É como se ele mesmo fosse uma espécie de imperador, um “imperador paperback”. Na mercado literário estadounidense, um livro é reimpresso em capa mole, o dito “paperback”, depois de vender um certo número de cópias em capa dura e justificar a reimpressão em massa de edições populares. A fortuna de Grisham é avaliada em 400 milhões de dólares, então faça as contas.

Explico o epíteto sem recorrer aos números. Apesar de gostar muito de O júri e O Dossiê Pelicano, a obra-prima de Grisham é, sem dúvida, seu segundo livro, A firma, publicado em 1991. É um suspense de Máfia e intrigas de fazer inveja a Mario Puzzo. E nada ilustra melhor o caráter “paperback” da obra de Grisham do que isso: a adaptação de A firma para o cinema, de 1993, não foi feita nem por De Palma, nem por Scorsese, muito menos por Coppola. Sidney Pollack (que, apesar de ter levado dois Oscar por “Out of Africa”, não é tão cultuado quanto a trinca acima mencionada) adaptou e dirigiu um roteiro de final livremente reestruturado, digamos, em um longa repleto de estrelas dos anos 90. Tom Cruise lidera o elenco que conta com Gene Hackman, Tobin Bell, Holly Hunter, Gary Busey, Jeanne Tripplehorn, David Strathairn e Ed Harris. Vale a pena assistir para um mergulho visual naquela década.

No Brasil, Grisham foi por muito tempo editado pela Rocco. Temos algumas brochuras de anos diferentes aqui na nossa biblioteca, inclusive uma de 1994 que foi garimpada em um sebo de Barão Geraldo. Atualmente, a Arqueiro está publicando a obra do norte-americano e, apesar de as brochuras terem perdido um pouco do charme que a Rocco imprimia nelas, é possível achar umas edições de boa qualidade e preços acessíveis – marca registrada da Arqueiro. É interessante acompanhar as fotos de Grisham através dos anos (e editoras) nas orelhas dos livros. Não é para qualquer um, isso de emplacar um best-seller internacional todo ano.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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