Konstantinos Kaváfis, sebos, crise com a literatura e Ítaca

Tem um sebo aqui em Barão Geraldo, distrito de Campinas que abriga a Unicamp, onde gostamos de passar umas horas de vez em quando. O sebo é bem organizado, limpo, justo nos preços e nas avaliações para compra ou troca e, o mais importante, dispõe de um acervo amplo no qual é possível garimpar por horas. Eles não têm Instagram, pelo menos até onde eu sei, e a página do Facebook não é atualizada há anos, então imagino que o modelo de negócios deles não tenha engrenado no formato comércio online. De qualquer maneira, talvez eles sejam apenas um grande ponto de troca de livros a três quadras da Unicamp, e através dele você possa passar algumas coisas para frente e resgatar outras, num imenso intercâmbio sem rostos (às vezes, um nome numa dedicatória) com outros alunos ou ex-alunos da Universidade. Gosto de pensar que ainda exista um lugar assim – e que ele tenha sobrevivido à pandemia.

Da última vez que fomos a esse sebo, o Galpão, mês passado, achei, entre outras coisas, uma coleção de poemas de Konstantinos Kaváfis editada pela Nova Fronteira, com tradução de José Paulo Paes, impressa em 1990. Nunca tinha lido nada de Kaváfis, mas já tinha ouvido falar muito nele. Inclusive, recentemente, na biografia de Fernando Pessoa que estou lendo, Richard Zenith havia traçado paralelos entre as obras de Kaváfis e Pessoa que me deixaram curiosa. Levei o livro para casa por R$16,00 (e o exemplar está extremamente bem conservado – não falei que os preços eram justos?).

Alguns dias depois, tive uma crise com a literatura que me fez questionar todas as horas que dedico a ela. Passei dias refletindo sobre meu hábito compulsivo de ler e nele cheguei a identificar a causa de muitos dos meus problemas: se eu dedicasse toda a energia que eu dedico à literatura a alguma outra atividade, ou a outras atividades, será que elas teriam sido mais recompensadoras? Eu falaria cinco línguas? Eu teria mais amigos? Eu seria uma atleta? Eu teria ficado rica antes dos quarenta? Compartilhei meu desassossego com uma amiga e conversamos um pouco sobre isso. Ela, em seu pós-doutorado na Unicamp depois de um doutorado em Oxford, ou seja, mais do que bem-sucedida nessa selva que é a academia, disse que já passou por uma crise parecida. Então me recomendou a leitura do poema Ítaca, do Kaváfis, que começa assim:

“Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.”

Na segunda estrofe, lemos:

“Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir”

Que achei um lindo jeito de descrever uma manhã numa boa livraria (ou num bom sebo). A terceira estrofe é ainda mais bonita:

“Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.”

Qualquer um que ame a literatura (ou que se coloque a caminho de qualquer Ítaca, claro) sabe a verdade que esses versos contêm.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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