David Copperfield

Esses dias terminei de ler David Copperfield. Depois de semanas de dedicação, cheguei ao último parágrafo da página 716 da ediçãozinha paperback da Penguin Classics, aquela em papel de jornal e composição serifada miúda com meio dedo de margem. Que sensação! Vou citar o próprio Dickens, no prefácio à obra, sobre ter terminado de escrevê-la, depois de dois anos de trabalho: “Minha mente estava tão dividida entre prazer e dor – prazer pela realização de um longo projeto, dor pela separação de tantos companheiros”. A última linha do prefácio é adorável: “Como muitos pais carinhosos, eu tenho no fundo do meu coração um filho preferido. E seu nome é David Copperfield”.

O cuidado que Dickens dispensou a cada frase e aos destinos de cada personagem evidencia essa predileção. Cada parágrafo contém, claramente, altas doses de entusiasmo criativo. A imaginação torrencial de Dickens tem limites larguíssimos e cores tão fortes que a mais comum das críticas à sua obra é a de que seus personagens são caricatos. No entanto, ler Dickens e chamar seus personagens de caricatos é o mesmo que ir ao teatro e dizer que ninguém usa aquele tanto de maquiagem na vida real. O ponto é exatamente esse. Para que se aproxime da realidade, a arte usa da matéria de que é mesmo composta, o artifício. Grandes artistas são grandes artífices e reduzir a obra de Dickens a um de seus artifícios não me parece algo que um leitor complexo deva fazer.

David Copperfield é uma monumental criação do intelecto, um prazer que generosamente nos acompanha por mais de 700 páginas, um amigo para toda a vida (nas palavras de Borges, em seu Curso de Literatura Inglesa, que inclusive foi o que me fez parar tudo e retornar a Dickens) e, para mim, particularmente, um tesouro do qual me apossei e do qual me orgulharei para sempre.

Obs.: A leitura no original em inglês não é exatamente fácil, mas com um dicionário, o LitCharts e até o ChatGPT (cuidado, às vezes ele viaja), é possível aproveitar a cadência da história na voz de Dickens e, de quebra, treinar leitura e expandir o conhecimento da língua. Vale demais a pena.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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