Coisas que vi, ouvi, aprendi…

A Âyiné de vez em quando me manda por email umas sugestões de livros que eu fico querendo por dias até cair como um patinho e fazer as encomendas. Por serem lindas, as edições, assim quando chegam, pulam para o topo da pilha de leituras e são rapidamente devoradas. Isso aconteceu recentemente com Um antídoto para a solidão, aquele de entrevistas com Foster Wallace que amei e comentei uns posts atrás.

Foi o caso deste Coisas que vi, ouvi, aprendi…, do filósofo italiano Giorgio Agamben, nascido em Roma, em 1942. Não conhecia nada dele e, por ter achado o trecho selecionado (algo como “A neve na Romênia”, que na verdade nem está neste que comprei) muito interessante, resolvi me arriscar. A edição, como vocês podem ver na foto, é linda. Os trechos curtos em azul são de rápida leitura, apesar de alguns deles merecerem uma pausa maior para nos demorarmos nos pensamentos.

Gostei de muitas coisas, mas outras me deixaram a impressão de uma certa frouxidão intelectual que não consegui apontar exatamente mas que pairou sobre a leitura de maneira geral. Frouxidão intelectual: talvez a maior falha que se possa atribuir a um filósofo, já que a filosofia é idealmente o rigor da matemática aplicado à experiência humana pela experiência humana. Sou apenas uma mortal leitora, então tal afirmação talvez seja temerária e pretensiosa – talvez a maior falha que se possa atribuir a uma diletante comentadora na internet. Mas vejam esse trecho, que compõe toda a página 28:

“Em Paris, vi que a religião mais intolerante é o laicismo, que uma garota com um lenço na cabeça é capaz de escandalizar mais do que o policial que a mata.” 

Anotei às margens: hiperinterpretativo e tendencioso. Embalada na leitura, eu não estava preparada uma guinada tão brusca à direita. Agamben, de um só golpe, ignorou séculos do ímpeto catequizador implacável dos europeus e, com base no que foi provavelmente um caso isolado na democrática sociedade francesa, equiparou o laicismo à documentada intolerância religiosa que abunda nos anais (hehe, desculpem, não resisti) do Velho Continente.  E, por falar de guinada à direita, tenho que confessar que, nesse sentido, concordo mais com Vargas Llosa em seu lúcido e bem-argumentado A civilização do espetáculo, quando ele afirma que, para coexistirem num estado democrático, as religiões “deverão renunciar aos extremismos de sua doutrina – monopólio, exclusão do outro e práticas discriminatórias e lesivas aos direitos humanos”. O véu é apenas um outro símbolo da submissão da mulher em sociedades violentamente machistas que podem ser encontradas no mundo todo. Dar garantias de prática pública de crenças religiosas é perigoso pois dá espaço a discursos homofóbicos disfarçados de religiosos (ou, às vezes, religiosos mesmo) que, por sermos brasileiros, estamos cansados de ver – especialmente cansados depois desses apocalípticos anos de 2018-2022.

Assim, fui pesquisar um pouco mais sobre Giorgio Agamben e qual não foi a minha surpresa ao descobrir que ele se manifestou publicamente sobre a pandemia de covid-19 e afirmou, chegando “às raias do rompimento com a verdade factual”, nas palavras de Yara Frateschi, que a pandemia teria sido inventada e que distanciamento social seria controle social por meio de estado de exceção, etc. O escambau negacionista todo – só faltou prescrever cloroquina. Frateschi, no bom texto que li no blog da Boitempo (já que eu não vou ler os livros de Agamben em primeira mão para tentar entender o pensamento de um negacionista), diz que a obra de Agamben é de fato “construída a partir de um binarismo um tanto simplório”.

Enfim. Foi o que bastou para eu poder concluir que Coisas que vi, ouvi aprendi… é um livro em parte interessante, mas no geral composto com uma frouxidão intelectual da qual, em pleno 2023, eu esperava ser protegida pela Âyiné. Sempre tenho altas expectativas com a editora de Belo Horizonte; afinal, eles publicam a biografia de Wisława Szymborska, suas cartas do Correio literário, as conversas entre Manguel e Borges. Não entendi por que me sugeriram esse livro.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *