Anna Kariênina e fofocas de tradução

Esses dias estava dando uma olhada nas edições de Anna Kariênina que temos aqui (Companhia das Letras, Editora 34, Record e Nova Cultural). A edição da Companhia é uma tradução de Rubens Figueiredo e contém uma apresentação de sua autoria, além de um posfácio de Janet Malcolm. A da 34 tem um lindo prefácio por ninguém menos que Thomas Mann. A da Record, que recebemos na nossa parceira, é uma reedição da tradução de Lucio Cardoso, publicada pela José Olympio em 1943, e o posfácio de Ésio Macedo Ribeiro nos conta que há apenas duas traduções da obra diretamente do russo, a de Rubens Figueiredo, de 2005, e a de Irineu Franco Perpétuo (a mais recente encomenda da 34, lançada em 2021). Lucio Cardoso traduziu do francês, o que era comum na época. Ésio Ribeiro continua: “Em 1995, o Círculo do Livro publica Anna Kariênina, mencionando que a tradução foi feita por Mirtes Ugeda, mas na verdade trata-se de plágio da tradução realizada por João Gaspar Simões, publicada em Portugal em 1971, ligeiramente modificada com algumas alterações de superfície.” Ou seja, mutreta. Fui pegar minha edição da Nova Cultural, porque o nome da tradutora inexistente não me soava estranho, e conferi que a folha de rosto estampava exatamente essas palavras: “Tradução – Mirtes Ugeda”. Ainda não fiz uma leitura comparada de todas essas edições, mas adorei a fofoca.

Achei mais especial ainda porque a minha coleçãozinha da Nova Cultural é o meu maior orgulho. As edições ema capa dura, encadernadas em verde, vinho, azul e preto, ficam em um lugar de destaque na nossa estante da sala. Além de Ana Karênina, tenho também Um conto de duas cidades, Crime e castigo, Drácula e O leopardo, entre outros. Lembro que comprei essa coleção em 2002, quando passei uns meses trabalhando no consultório de um tio meu, dentista. Ele me dava um trocado e eu ia na banca de jornal comprar os volumes que eram lançados semanalmente, um melhor que o outro. Na época, eu nem me atentava a detalhes como cor do papel ou nome de tradutor. Foi nessas edições que li Bram Stoker, Dickens e Dostoiévski pela primeira vez. Talvez eu possa até dizer que foram essas edições que me fizeram apaixonar de maneira incontrolável e permanente pela literatura.

Tive muitas brochurinhas da Martin Claret, que eu achava no supermercado por R$8 quando ia com meus pais fazer compras, e lembro de ter lido Huckleberry Finn umas duas ou três vezes, adorando aquela diagramação apertada e miúda, com aparência de xerox econômico, afinal eu estava fazendo minhas escolhas literárias pela primeira vez. A Martin Claret, apesar dos escândalos de plágio de traduções, levava dúzias e dúzias de títulos clássicos aos expositores bem ali ao lado dos caixas, e por isso acabou possibilitando a muitas pessoas da minha idade que fizessem suas primeiras escolhas. As brochuras eram excepcionalmente boas e baratas. Se eu não tivesse encarado um calhamacinho do Mark Twain na adolescência, certamente não teria coragem de enfrentar os que vieram depois. Se não fossem as edições da Nova Cultural a preços acessíveis à minha mesada, eu talvez não tivesse chegado à fonte, a esses mestres fundadores da nossa tradição literária.

Então, apesar de entender que as pessoas envolvidas na cadeia do livro precisam e devem ser remuneradas por seu trabalho, também imagino que o negócio livreiro não é um negócio como qualquer outro. Estamos falando do comércio de ideias; sempre haverá um fator complicador do debate realizado dentro das linhas estipuladas pela ética mercantil do capitalismo. Meu dilema talvez seja esse, então: qual direito deve prevalecer, se entendemos o direito às ideias como um direito humano fundamental? Por outro lado, como oxigenar a cadeia do livro, se roubamos de seus profissionais? Não é um problema com solução fácil, neste primeiro quarto do século XXI. Estou andando em círculos, eu sei, mas não posso deixar de acrescentar mais um questionamento: se eu não tivesse acesso àquelas edições baratas na adolescência, será que eu teria comprado tantos livros no decorrer da minha vida adulta? Não sei exatamente quantos temos aqui na biblioteca, mas na última vez que contamos, eram mais de 1200. Posso dizer com certeza que colaborei e sigo colaborando para a economia do livro no Brasil. E ainda: sem aqueles longínquos estímulos, será que eu teria sequer condições ou interesse de passar minha noite de quarta-feira pensando sobre esse dilema tão específico?

Que fique claro: isto não é uma apologia ao plágio, mas sim o desabafo de uma leitora da classe trabalhadora.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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