Joan Didion, Rastejando até Belém e caderninhos de anotações

Rastejando até Belém é uma coleção de vinte ensaios publicados nos anos 1960, em diversas revistas, por Joan Didion, clássico estadunidense na tradição do jornalismo literário. O mais curto dos textos, “A rocha secular”, sobre a ilha de Alcatraz, tem quatro páginas; o mais longo deles, que dá nome à coletânea, tem mais de quarenta e é um relato despojado, curioso e perturbador da cultura hippie mais underground da São Francisco dos anos 60. E talvez estes três adjetivos sejam adequados para descrever o estilo de Didion: despojado pois ela narra como quem paira a uma certa distância, curioso pois seu olhar é penetrante e capta detalhes incomuns, perturbador pois suas constatações nos desestabilizam.

Em “Sobre ter um caderno”, Joan Didion reflete sobre o hábito de manter um caderno para anotações desordenadas, dessas que aparentemente só fazem sentido para o autor das anotações. Ela vai além e reflete também sobre a personalidade das pessoas que teimam em ser escrevinhadoras de caderninhos, “solitárias e resistentes, sempre querendo reordenar as coisas”, munidas desse hábito “peculiarmente compulsivo, inexplicável para quem dele não compartilha”. Para Didion, esses apontamentos sobre o mundo recolhidos ao acaso são como pequenos fragmentos mágicos, já que eles têm o poder de transportá-la para o momento do registro, reconstituindo toda uma cena por trás do punhado de palavras ali plasmadas de maneira aparentemente gratuita. Didion também fala sobre o esquecimento enquanto pensa sobre seus cadernos: “esquecemos muito cedo das coisas que pensávamos que nunca esqueceríamos”.

Esses dias, relendo umas anotações de viagens, me diverti tanto ao relembrar detalhes que de outra maneira se perderiam na memória (preços de refeições ou de coisinhas que foram adquiridas, a receita de um drink que provei em um bar que não existe mais) que, mais do que nunca, devo dizer que estou empenhada em continuar esse hábito levemente lunático em tempos de câmeras portáteis ultraprecisas e stories frenéticos.

Vale a pena conferir essa bela edição da Todavia (e manejá-la com muito cuidado, pois essa capa branca no material que a Todavia usa é a fórmula certa para eternizar marcas de dedos – mas, claro, nada que um leitor habitual não consiga instintivamente fazer).

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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