Escrever é muito perigoso

Para a ganhadora do Nobel Olga Tokarczuk, escrever é muito perigoso. Também é difícil, excêntrico, intuitivo, mediúnico, essencial e uma atividade da qual ela basicamente não gosta. Nesta coletânea de ensaios e palestras, organizada pela autora durante a pandemia, é possível vislumbrar a imensidão de sua cultura literária, a profundidade de sua sensibilidade humanista e os meandros de seus processos criativos. Anotei tanto meu exemplar da Todavia (aliás, bonita edição, apesar do corte roxo espalhafatoso) que, no fim das contas, era mais fácil eu não ter anotado nada: transcrevi praticamente o livro inteiro no meu caderninho de anotações.

Compartilho alguns trechos aqui com vocês:

“Esta deve ser a primeira vez na história que o ser humano vivencia a aguda finitude do muno. No final da tarde, acompanha a vida de outras pessoas pelas telas dos seus dispositivos smart e observa gente que, há uns cem anos, nunca teria tido a chance de conhecer.” (p. 10)

“De fato, o primeiro a usar o verbo ’surfar’ para descrever essa atividade foi um gênio. A imagem de um homem solitário que procura, sobre sua pequena prancha, deslizar na crista de uma onda no meio de um oceano tumultuoso é muito acertada.” (p. 13)

“A consciência de que agora mesmo, enquanto escrevo estas palavras, são produzidas centenas ou até milhares de artigos, poemas, romances, ensaios, reportagens e outros textos, causa perplexidade. A infinitude se reproduz por si mesma, prolifera, enquanto utilizamos os frágeis mecanismos das ferramentas de busca para sentir que ainda exercemos algum controle sobre ela.” (p. 15)

“Acho que o pecado pelo qual fomos expulsos do paraíso não foi o sexo, nem a desobediência, nem mesmo a descoberta dos segredos divinos, mas a ideia de que somos algo separado do resto do mundo, singular e monolítico.” (p. 17)

“Hoje, a diferença entre netos e avós é maior do que a que havia antigamente entre os habitantes de Nova York e Sandomierz.” (p. 19)

“Eu sei que muitas pessoas consideram a literatura um passatempo ocioso que se reduz a ‘um livro para ler’, ou seja, algo sem o qual é possível ter uma vida feliz e plena. Mas, na sua concepção mais ampla, a literatura é sobretudo um ‘abre-te, Sésamo’ que descortina os pontos de vista de outras pessoas, as visões do mundo filtradas pela mente singular de cada indivíduo. É incomparável.” (p. 26)

“O contato íntimo com as linguagens de pessoas criativas funciona como vacina contra a visão do mundo criada provisoriamente e tratada de modo instrumental.” (p. 83)

“‘Ver os jardins de Tântalo em Homero’, ‘assistir às guerras napoleônicas em Tolstói’, ‘caçar baleias em Melville’, ’ser um amante feliz em Prus’ – serão, talvez, as expressões mais lacônicas, e ao mesmo tempo mais acertadas, daquilo que a literatura faz conosco.” (p. 85)

“Entre todas as espécies, apenas o ser humano adquiriu a misteriosa capacidade de ler, ou seja, abandonar a realidade que lhe foi dada, embora só mental e temporariamente. A cada vez que abrimos um livro, entre o olho e a superfície do papel acontece um milagre, algo de fato incrível.” (p. 86)

“Não lemos em momentos de agitação e estresse. As pessoas que sofrem de psicose perdem essa capacidade quase por completo. A leitura é, portanto, o privilégio de uma mente saudável e equilibrada.” (p. 86)

“Se um indivíduo não tiver sentido aquele prazer quase erótico decorrente da leitura entre, digamos, nove e dezesseis anos, nunca se tornará um autêntico leitor.” (p. 87)

“No início do mundo, sempre houve uma narrativa.” (p. 96)

“Na história da literatura sobressai um certo padrão: os escritores de cada período têm saudade de uma idade de ouro, dos tempos ideais, quando a literatura era uma coisa muito maior do que na época deles, mesmo que seja difícil determinar o que de fato ela foi.” (p. 111)

“Tenho muita pena de vocês, jovens escritores. Vocês acabam vivendo em um mundo no qual a leitura será praticada, talvez, por mais duas ou três gerações, ou melhor, por uma fração delas que se exprimirá em um algarismo único. Depois chegará o fim da literatura tal como a conhecemos. Vocês vivem em um mundo de produto e mercadoria, para além do qual nada existe, um mundo em que o livro se transformou em uma mercadoria igual a um tijolo ou uma meia.” (p. 113)

“Orwell nota que, ao chegar aos trinta anos, as pessoas comuns abrem mão do seu individualismo e passam a viver para os outros, entregando-se, na maioria dos casos, aos enfados do cotidiano. No entanto, uma minoria talentosa e obstinada fará tudo para viver sua própria vida, e é a esse grupo que pertencem os escritores.” (p. 122)

“A admiração prematura, narcisista e penetrante pela emissão da própria voz lembra a alegria de uma criança que começa a balbuciar e fica espantada, enxergando reações aos sons que produz como prenúncio do poder. Escrevo! Invento! O assunto parece óbvio e natural como mover-se, andar, falar.” (p. 137)

“Eu adoro o termo polonês wglad, ou conhecimento intuitivo, que traduz muitas das minhas decisões narrativas não totalmente racionais, situações incomuns, escolhas excêntricas.” (p. 180)

“Existe mais um conceito fundamental que utilizo no meu trabalho: é a excentricidade. Ela deve ser apreendida, porém, de maneira mais ampla do que em situações como o formato de um chapéu ou comportamentos atípicos de senhoras idosas. Trata-se de uma posição peculiar assumida na percepção do mundo: da saída do centro para além de uma experiência da realidade comum, ordenada e aceita por todos. É a busca consciente de uma perspectiva que ainda não seja universal, mas através da sua novidade mostre o que não foi enxergado, o que foi omitido. Quem não for excêntrico o bastante não será bom escritor.” (p. 183)

“Enquanto escrevia Os livros de Jacob, tive muitas vezes a sensação de que segurava o fim de um fio e, se o seguisse com confiança, aquilo que estava procurando iria surgir à minha frente, aparecer quando eu dobrasse a esquina. E muitas vezes foi assim.” (p. 184)

“Porque é verdade que muitas vezes, quando eu estava com um cálice na mão em uma festa na casa de alguém, eu peguei da estante um livro ao acaso e abri em uma página também aleatória, encontrando precisamente algo de que precisava: personagem, acontecimento, informação, associação, referência desconhecida.” (p. 185)

“No entanto, para conferir mais seriedade ao que estou dizendo, cunhei um suporte em latim: este mundo que ajuda, mundus adiumens, é algo que traz a sensação de estar sendo conduzido pela mão e introduz em um estado maravilhoso, parecido com um transe narcótico, uma psicose suave, bastante agradável, mas ao mesmo tempo persistente e dificilmente controlável.” (p. 185)

“É meu modo de criar: tenho no meu computador algumas ideias in status nascendi de que me ocupo simultaneamente, deixando que cresçam, inflem. Depois, algum fator, um evento ou experiência inesperados, costuma fazer com que eu comece a prestar maior atenção a alguma delas.” (p. 188)

“Não porque eu receasse a falta de ideias, mas porque a escrita é para mim um trabalho árduo, físico, de que sinceramente não gosto.” (p. 202)

“Para o caos virar romance, é necessário mesmo um otimismo inesgotável, muito mais importante do que o talento ou diligência, tantas vezes sobre-estimados.” (p. 205)

“Eu acompanhava Duszejko de forma muito intensa quando ela confessava seus crimes. Eu entendia seu estado de espírito e ao mesmo tempo estava chocada com sua confissão. Eu sabia, de fato, como isso ia acabar, mas mesmo assim fiquei surpreendida com o desfecho tão trágico. Quando escrevi as últimas páginas, fiquei tão triste que, fumando aquele maldito cigarro na varanda, até chorei.” (p. 208)

“Por fim, quero afirmar com toda a convicção que não há arte sem uma pitada de irracionalidade, já que a arte exprime sempre a totalidade da experiência humana, em que cabem, de fato, intuição e obsessões, loucura e fantasia, tanto quanto ideias. A linguagem, por sua vez, é a faca e o garfo com os quais consumimos com elegância a realidade.” (p. 212)

“No entanto, essa tendência a uma literalidade que restringe o pensamento vem se tornando uma doença grave de nossos tempos. Seu primeiro sintoma é a falta da capacidade de entender as metáforas, e depois a pauperização do sentido de humor. Ela envolve propensão a julgamentos peremptórios e precipitados, intolerância à ambiguidade, atrofia da sensibilidade à ironia e, finalmente, regresso ao dogmatismo e ao fundamentalismo.” (p. 226)

“A leitura é um processo psicológico de percepção bastante complexo. Simplificando: primeiro um conteúdo extremamente elusivo é conceitualizado e verbalizado, transformado em signos e símbolos, e depois “decodificado” de volta da linguagem para a experiência. Isso exige certa competência intelectual, mas sobretudo exige atenção e concentração, habilidades cada vez mais raras hoje, em um mundo caracterizado pela extrema distração.” (p. 246)

“A literatura é um dos poucos domínios que tenta nos manter perto da concretude do mundo, porque ela é sempre ‘psicológica’ por natureza.” (p. 248)

“Produzo ficção, mas nunca é um coelho tirado da cartola. Quando escrevo, tenho de sentir tudo dentro de mim. Tenho de deixar que me atravessem todos os seres e objetos presentes no livro, todo o humano e não humano, vivente e não dotado de vida. Tenho de examinar cada coisa e cada pessoa de perto, com a maior seriedade, e personificá-las dentro de mim. É para isso que eu preciso do sensível.” (p. 257)

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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