Antes do baile verde

Quem é o maior escritor brasileiro vivo? O que é preciso para esse título? Caminhar com maestria entre diferentes gêneros literários? Quantos livros é preciso ter publicado? 10? 20? Quantos prêmios é preciso ter recebido? Uma postura política favorável aos direitos humanos é interessante… E quem disse que esse é um escritor? E não uma escritora?

Lygia Fagundes Telles pode ser a resposta para a primeira pergunta. Conhecida como “a grande dama da literatura brasileira”, Lygia escreveu romances e contos. Sua estreia foi em 1954, com o romance Ciranda de Pedra (na verdade mesmo, ela publicou outros livros antes, mas – como ela conta nessa entrevista muito gostosa de assistir – não estão mais disponíveis, porque a própria Lygia fez questão de jogá-los fora, com a justificativa que, no Brasil, um país em que pouco se lê, não se deve perder tempo com suas juvenílias), e a partir daí é história: vieram mais de vinte livros, entre coletâneas de contos e romances, até 2012, com sua última publicação – pelo menos até agora -, Um coração ardente.

Além de tudo isso (ou talvez a causa de tudo isso), Lygia tem duas das maiores qualidades de um grande escritor: ela sabe se colocar na pele do outro. Com todo o apuro formal da linguagem sóbria, característica de Lygia, ela dá vozes singulares às suas personagens – e por isso, apesar de reconhecermos a unidade e densidade da voz de Lygia, a voz que ela dá à narradora do conto “Natal na barca”, que está em companhia de uma mulher cujo filho está a beira da morte, é diferente da voz da jovem Tatisa, em “Antes do baile verde”, que quer ir ao baile pelo qual esperou tanto tempo, enquanto seu pai está morrendo no outro cômodo. Como resultado dessa primeira característica, vem a segunda: Lygia é uma exímia contadora de histórias, de acordo com Caio Fernando Abreu. 

No posfácio de Antes do baile verde, Antonio Dimas é contemplado com uma metáfora (já que metáforas não são criadas, segundo Jorge Luis Borges, “…as verdadeiras, as que formulam conexões íntimas entre uma imagem e outra, existiram desde sempre; as que ainda podemos inventar são falsas, são as que não vale a pena inventar.”) de Lygia como uma felina: em seus contos, vem sorrateira, e de repente te lasca as unhas, formando um fino filete de sangue: sem algazarra, mas o suficiente para perturbar o equilíbrio.

Antes do baile verde é talvez o livro em que Lygia se mostra de modo mais pessoal, já que (dentre as muitas versões dessa obra), a que temos hoje é a final. Os contos presentes nessa antologia foram escolhidos por Lygia com um critério apenas: os melhores, os que ela mais gosta. Nessa reunião, todas as histórias são microscópicas, não tem nada escancarado, todas com foco no íntimo, numa aparente percepção de equilíbrio, que é perturbada de algum modo, e ao terminarmos a leitura, ficamos com aquela sensação de um um filete de sangue depois de Lygia ter nos rasgado a pele.

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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