Gabriela, cravo e canela

Em sua Breve história da literatura brasileira, publicada em 1945, Erico Verissimo propõe no capítulo final a seguinte ponderação: “Qual é o romance mais representativo do Brasil? Para responder adequadamente a essa pergunta é preciso, antes de tudo, descobrir qual é a região ou grupo humano mais representativo de meu país, e não creio que se possa chegar a uma escolha definitiva sem injustiça.” Segue-se a isso uma reflexão sobre a extensão do nosso território e a diversidade cultural incalculável que nenhuma obra brasileira ainda foi capaz de captar: dos sertões ao oceano Atlântico e das serras gaúchas à Amazônia, existem comunidades tão variadas que qualquer artista que se empenhasse em representar todas essas manifestações geográficas e culturais acabaria por produzir enfim um almanaque, e não um livro profundo e “sociologicamente significativo”. Impossível, portanto, escolher uma obra que represente o Brasil em sua vibrante heterogeneidade. Erico prossegue em sua dissertação apontando escritores que configuram o melhor das produções regionais do país e menciona Jorge Amado, esse “contador de histórias nato” a quem apelida de “o rapsodo da Bahia.”

Erico, responsável por produzir a grande saga da família Terra Cambará, ficção de caráter épico em que reconstitui a história do Rio Grande do Sul desde as lutas por territórios nos tempos das Missões, sem dúvida acerta em sua leitura do nosso panorama literário e social na primeira metade do século passado. Se pudéssemos, no entanto, esticar por abstração didática a ideia do “tipo brasileiro”, conforme uso das ferramentas teóricas que nos permitem sequer falar em nacionalidade para além do documento e da língua em comum, talvez pudéssemos dizer que a média do brasileiro estaria mais bem representada em Jorge Amado do que no próprio Erico – esses dois autores que no século passado atingiram picos inéditos e ainda não repetidos de popularidade e prestígio (e, por que não, de qualidade).

Primeiro porque o Brasil começa na Bahia, simplesmente, e segundo porque Jorge Amado foi nosso grande, nosso maior criador de tipos. Para o repertório de figuras brasileiras, colaborou com Pedro Bala e seus Capitães da Areia, Dona Flor e seus dois maridos, Quincas Borba, Tereza Batista, Tieta e uma multidão de personagens que até hoje povoam as novelas da Globo com grande audiência. Na época em que lançou o quinto de sua carreira de mais de quarenta livros, já era o escritor brasileiro mais traduzido no mundo. Hoje, já foi editado em 55 países. Jorge foi um verdadeiro popstar no mundo literário brasileiro – coisa que, convenhamos, é um feito e tanto em um país cuja população de jovens e adultos, em 1960, era composta por 39,6% de analfabetos. Em 1958, quando Jorge lançou Gabriela, cravo e canela, o livro em quatro meses vendeu 40 mil exemplares, de acordo com a biografista Joselia Aguiar. Foi uma febre e uma febre duradoura: quem não se lembra dos incontáveis banhos seminus de Juliana Paes encarnando a retirante na novela das onze, exibida em 2012 com Humberto Martins no papel de Nacib? 

Se esticamos o tipo brasileiro para escolher nosso representante e chegamos em Jorge Amado, talvez não seja impossível forçar um pouco mais a barra e apontar Gabriela, cravo e canela como a mais emblemática das suas obras. Produzida já num período de maturidade no ofício, a obra é a mais traduzida do escritor baiano e ganhou, entre outros, os prêmios Jabuti e Machado de Assis. Nela se encontram os traços mais marcantes da voz de Jorge Amado: o sotaque inescapável, a representação da oralidade, os recursos poéticos. Pode-se ver também um retorno à terra de sua infância, Ilhéus, e ao chamado ciclo do cacau, repleto de coronéis e jagunços. Tudo isso embrulhando um conjunto de tipos brasileiros inconfundíveis, das putas do Bataclan ao negrinho Tuísca, numa narrativa romanesca que é, ao mesmo tempo, uma profunda crítica social e uma crônica de costumes exemplar.

A história se passa nos anos 1920. A protagonista Gabriela, “cheiro de cravo e cor de canela”, é a cozinheira de mão cheia que o árabe Nacib por muita sorte acha e por quem acaba se apaixonando: eis a festa das raças no melhor estilo Gilberto Freyre. O plano privado da narrativa, cujo fio é o romance de Gabriela e Nacib, ecoa o plano público, onde se dão intensas disputas políticas que giram em torno do progresso e do conservadorismo. Exportadores de cacau versus coronéis, Mundinho Falcão versus Ramiro Bastos, porto de Ilhéus versus porto da Bahia. O enredo se impulsiona nessa dialética e o que permeia os dois planos da narrativa é o crime que acontece logo no início de livro e cujo julgamento só se resolve num breve epílogo: o coronel Jesuíno Mendonça, ao encontrar a esposa, dona Sinhazinha, na cama de sua própria casa com o dentista Osmundo Pimentel, mata os dois a tiros por uma questão de honra. O episódio é um prenúncio do que acontecerá no relacionamento de Gabriela e Nacib e também um termômetro social das inclinações, pois há quem defenda o coronel e seu direito a lavar a honra. 

O arquétipo do homem brasileiro está ali desenhado e os últimos cem anos provaram que Jorge Amado estava certo quando pintou esse tipo que quer resolver suas questões na bala. Afinal, não foi com esse mesmo direcionamento que o atual presidente da República foi eleito, em pleno século 21? Também está esboçada a mulher ideal: mulata bonita, bem formada e sensual, porém inocente em sua subserviência. José Paulo Paes vê em Gabriela “um forte traço de infantilidade que chega por vezes à beira do retardamento mental”. Claro que isso não é privilégio da mulher brasileira: a doce e loura Fantine de Victor Hugo era tão ingênua a ponto de ser abandonada com uma filha e, ainda assim, escrever cartas para seu amado Tholomyès; a bela Remédios de García Márquez, por quem os homens morriam de amor no sereno, era tão inocente que levava sua tia Amaranta a suspeitar de que era retardada. Talvez essa inocência seja apenas outra face da pureza e da castidade femininas, ainda impostas a mulheres do mundo inteiro como medida de virtude. Em Gabriela, Jorge Amado não passa ao largo dessa discussão, mas convém lembrar que ele mesmo é um homem branco escrevendo. Comunista, ativista, progressista e até preso político, mas ainda assim um homem branco.

É certo que Jorge Amado, entre outras coisas, ajudou a fixar certos parâmetros da literatura brasileira em geral, vigentes até hoje. Como ele mesmo relata e se pode ler na biografia escrita por Joselia Aguiar: “Possivelmente nada tenho de perfeito como estilista. Sou de uma geração que neste particular abriu caminhos próprios. Conseguimos escrever numa língua do povo brasileiro. Talvez ainda não tenhamos dado a essa língua toda sua lapidação literária. Acredito que os jovens que venham a nos suceder completarão o nosso trabalho e se apossarão de um maravilhoso instrumento estilístico que é a língua à qual nós demos dignidade literária.”

Desde o título, que traz justaposto ao nome da protagonista dois tipos de especiarias, Gabriela, cravo e canela é um livro tão representativo da América do Sul e seu destino de terra achada e também do Brasil e seus dilemas de raça e progresso, que é tentador responder à pergunta de Erico que abre este texto com um exclamativo Gabriela! Para não incorrer na injustiça que Erico quis evitar, no entanto, digamos cautelosamente que Gabriela é uma das maiores obras produzida por um dos nossos maiores escritores em seu apogeu e que ela representa a chamada brasilidade com um sabor reconhecível a qualquer brasileiro, do sul ao norte do país. 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *