Chinua Achebe, Ngũgĩ wa Thiong’o e a configuração linguística pós-colonial no continente africano

A configuração linguística pós-colonial no continente africano é muito representativa tanto da diversidade dos povos autóctones quanto da violência do contato entre as civilizações europeias e africanas: a África registra mais de duas mil línguas faladas, além de quase oito mil dialetos; entre os 54 países do continente, seis deles falam português, oito falam inglês e mais de vinte falam francês. Essa configuração ilustra bem os movimentos imperialistas que resultaram nos números recitados por James D. Wolfensohn, presidente do Banco Mundial entre 1995 e 2005, em seu discurso na ONU: “Vocês ficarão chocados, como eu, ao saber que 37% da riqueza africana em mãos particulares está fora da África, enquanto na Ásia essa proporção é de 3% e na América Latina é de 17%”.

 Esses números indicam com clareza que o caráter das expansões imperialistas europeias do século XIX em direção à África nada teve de inofensivo e marcou de maneira profunda o futuro do continente, tanto do ponto de vista econômico e político quanto linguístico e cultural. 

Assim, séculos de pilhagens e demonstrações de poder por parte da Europa, essa província que estendeu sua própria experiência às mais diferentes formas de organização social e de se estar no mundo, impuseram, entre outras coisas, as línguas europeias aos povos colonizados. 

Grande parte das literaturas africanas pós-coloniais é produzida em inglês, francês e português. Principalmente durante os processos de descolonização a partir dos anos 1950, surge uma persistente discussão sobre como encarar a questão da produção artística nesses idiomas. Vários autores africanos se posicionam pelo uso das línguas autóctones, enquanto outros – entre eles Mia Couto, renomado autor moçambicano – se referem às línguas alienígenas dos colonizadores como “troféus de guerra” que devem ser exibidos na expressão de suas experiências. 

Chinua Achebe, nigeriano considerado o pai da literatura africana, produziu sua aclamada obra em inglês, não em igbo. Ngũgĩ wa Thiong’o, celebrado escritor e acadêmico queniano, por sua vez, escreve sobretudo em gikuyu, apesar de traduzir seus próprios livros para o inglês. 

Achebe, em seu ensaio The African writer and the English language, discute como o imperialismo, apesar de tudo, foi facilitador de uma língua comum que permite trocas e que faz as vezes de uma “moeda mundial”. Conhecido por suas posições moderadas com relação à herança colonial, não sem controvérsias, o nigeriano afirmou em A educação de uma criança sob o Protetorado Britânico: “Eu poderia ter me detido nas duras humilhações do domínio colonial ou nos dramáticos protestos contra ele. Mas também sou fascinado pelo meio-termo, esse terreno intermediário de que já falei, onde o espírito humano reluta em reduzir sua humanidade.”

No entanto, sua obra máxima, Things fall apart, publicado em 1958 e o primeiro livro da chamada “trilogia africana”, ainda que sob críticas de ter sido criado nos moldes da literatura europeia clássica, é por si só uma voz poderosa no entendimento do contato entre os povos. No livro, Achebe segue seu protagonista, Okonkwo, desde sua vida no povoado de Umuofia, intocada pelo colonizador europeu, até o exílio de sete anos e a parte final em que, ao retornar para o vilarejo, testemunha as profundas mudanças provocadas pela presença do homem branco. Refletindo a realidade, a história de Okonkwo não apresenta lições ou falsos finais felizes e seu desfecho simbólico é de fato um chamado à reflexão sobre a questão pós-colonial.

Os costumes e instituições igbo retratadas no texto límpido da ficção de Achebe fizeram com que a obra fosse adotada por algumas universidades americanas e europeias, nos cursos de antropologia, e lida como um trabalho etnográfico. Achebe se manifestou contra isso em inúmeras ocasiões e frisou o caráter ficcional de Things fall apart que, a despeito das clarificações, continua muitas vezes a ser lido como uma peça  antropológica. 

Isso não seria de todo ruim não fosse o caráter paternalista que cerca toda a atitude. Dificilmente leríamos um romance clássico europeu, de Virginia Woolf ou Franz Kafka, digamos, como se lê um trabalho da ciência antropológica. Isso só acontece com Things fall apart porque a própria figura do etnólogo é essencialmente colonial. Em O etnógrafo perante o colonialismo, Michel Leiris discorre sobre os primórdios da etnografia, contemporânea das expansões europeias e “estreitamente ligada ao fato colonial.” O eurocentrismo de que é carregado a própria prática etnográfica como algo concebido a partir da cultura “mais perfeita”, ou seja, a ocidental, ou mesmo o olhar perturbador do observador alienígena percorrendo as “sociedades não-mecanizadas”, condenam a produção etnográfica a uma imparcialidade total impossível. O autor conclui suas reflexões delegando ao etnógrafo a tarefa de compreender as sociedades estudadas e agir como “seus advogados naturais face à nação colonizadora a que pertencemos.”

Facing Mount Kenya, publicado em 1965 por Jomo Kenyatta, considerado o fundador da nação queniana, se nos passa através da figura atípica do etnógrafo originário da própria cultura observada, um totalmente diverso daquele exposto por Leiris. Na obra, cujo tom respeitoso e por vezes até elogioso não é difícil constatar, Kenyatta, que é de origem gikuyu, analisa os três princípios governantes da organização tribal dos gikuyu: o grupo familiar por relações de sangue (mbari) em que pode se praticar a poligamia, o clã (moherega), que junta diversos mbari com antepassados comuns, e o sistema de age-grading, classificação etária (riika), que solidifica toda a organização da tribo.

Algumas instituições e mitologias próprias dos gikuyu descritas em Facing Mount Kenya aparecem em Um grão de trigo, romance de Ngũgĩ wa Thiong’o que também se prestou a tais interpretações etnográficas – talvez, além do motivo paternalista, por misturar ficção e narrativa histórica, já que o próprio Kenyatta é referenciado aqui e ali no decorrer da leitura. Nele, acompanhamos seus personagens Gikonyo, Karanja, Kihika e Mugo num momento de grande agitação na recém-fundada nação do Quênia, tendo como evento-chave da narrativa o levante dos Mau-Mau.

Esse episódio, que deu ensejo ao aprisionamento de mais de um milhão de gikuyus, mantidos em campos de concentração pelo poder britânico ao reivindicar sua independência como país, elevou também Kenyatta à condição de herói no Quênia. Quando foi libertado após nove anos na prisão, Kenyatta foi eleito presidente e permaneceu nesse posto de 1964 a 1978. Nesse período, ele personifica um outro caractere recorrente na história da África pós-colonial: o chefe político endeusado por muitos, altamente europeizado e também envolvido em casos de corrupção e favorecimento de seu próprio grupo étnico. 

As obras de Chinua Achebe e de Ngũgĩ wa Thiong’o se ajustam bem a um desenho da produção cultural na África pós-colonial e são paramétricas para a discussão das línguas como herança imperialista. Para a professora Elena Brugioni, “é possível encarar a escrita da história no romance africano pós-colonial como um dispositivo estético, político e conceitual capaz de redefinir a relação entre espaço e história, imaginação e política, reequacionando os aparatos conceituais e os significados desse gênero literário no que vem sendo definido como pós-colonialidade.”

É claro que muitos outros autores de outros países de experiência semelhante poderiam ter sido usados como estofo para esta discussão. Achebe e wa Thiong’o, no entanto, servem bem a esse propósito por terem se engajado de maneira ativa na discussão do papel da língua como instrumento de dominação. É ilustrativo também o fato de serem originários de países geograficamente opostos no continente africano: a Nigéria é banhada pelo oceano Atlântico e o Quênia pelo Índico; ainda assim, a distância geográfica não impediu que ambos os territórios vivessem experiências de violenta dominação em que as línguas majoritárias gikuyu e suahili cederam espaço, à força das demonstrações de poder, à língua inglesa, um dos maiores avatares do colonialismo. 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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