The African trilogy

Século XX: depois de financiar duas guerras mundiais, a Inglaterra é forçada a abandonar 300 anos de colonização em apenas três décadas. À imposição violenta de sua língua e instituições em territórios africanos se segue a retirada estabanada que inicia o processo de descolonização das porções britânicas do continente. No caso da Nigéria, essa retirada culmina na independência total do país em 1960, o que resulta no estabelecimento de um governo federal que vai abarcar mais de 500 grupos étnicos, múltiplas práticas religiosas e um vácuo político que dá ensejo a sucessivos golpes militares e uma guerra civil que dura três anos. 

Através da história do trágico herói Okonkwo e seus descendentes, o nigeriano Chinua Achebe (1930-2013), também conhecido como o “pai da literatura africana”, joga nova luz sobre as narrativas europeias cristãs dos missionários “humanitários” que levaram aos “nativos” uma “palavra de salvação” ou, ainda, uma “extensão da civilização”. Uso estas aspas com certa raiva: os relatos históricos estão repletos de termos instrumentais essencialmente coloniais. Até as corriqueiras expressões “expansões e descobertas” para designar aqueles movimentos predatórios são impregnadas de colonialismo: o que a Europa fez com o resto do mundo a partir de 1500 foi simplesmente invasão e pilhagem e a história nunca será contada sem falácias enquanto não se derem nomes aos bois. A violência se esconde também nos detalhes. 

A própria antropologia é uma ciência que nasce do contato colonial e em cujos primórdios se verifica uma condescendência sórdida: a primeira corrente propriamente antropológica parte dessa imagem duradoura dos “selvagens” ou “primitivos” e numa perspectiva diacrônica baseada em Darwin e Comte estabelece o ideal europeu como paradigma da evolução – Morgan, Tylor e Frazer são os primeiros expoentes dessa nova ciência em cujo centro está o homem europeu. E vale lembrar que estamos falando dos esclarecidos: os três foram professores universitários que viveram há menos de dois séculos. Da mesma maneira, também eram esclarecidos os hoje indiscutíveis clássicos Joseph Conrad e Daniel Defoe, que rechearam suas obras-primas com representações que ajudaram a firmar uma visão essencializante da raça – Conrad com seu cortejo de selvagens às margens do rio Congo e Defoe com a subjugada figura de Sexta-Feira diante de Crusoé. Voltaire (séc. XVII) chama os africanos de “animais” que precisam “aprender a civilização” e Hegel (séc. XIX) afirma que a África “vive fora da História, alheia ao Desenvolvimento”. Obviamente, isso só pode ser dito a partir de uma miopia eurocentrista (que ainda não abandonamos: quando falamos da África, falamos sobre os períodos colonial e pós-colonial, como se a história do continente tivesse começado com a chegada dos europeus; o mesmo se dá com todos os territórios coloniais cujos povos foram aniquilados pelo capitalismo europeu incipiente) que ignora, por exemplo, Abu Bakr, um monarca malinês que no séc. XIV (mais de um século e meio antes de Colombo, portanto), equipou uma expedição com duzentos barcos para tentar descobrir “o outro limite do oceano Atlântico”.

É contra esse monumental bicho-de-sete-cabeças que Chinua Achebe decide que precisa escrever – depois de ler obras como Heart of darkness e perceber que aqueles selvagens pulando nas matas era ele, na verdade.

Originalmente publicado em 1958, Things fall apart é o primeiro livro da chamada Trilogia Africana e é o primeiro livro africano a ter projeção global, tendo vendido mais de 20 milhões de cópias em 57 línguas. Os outros dois livros, também escritos em inglês, são No longer at ease, de 1960, e Arrow of God, de 1964 (no Brasil, esses títulos foram traduzidos como: O mundo se despedaçaA paz dura pouco e A flecha de Deus – todos editados pela Companhia das Letras). Chimamanda Ngozi Adichie, no prefácio da bela edição da Everyman’s Library, fala sobre o “inglês igbo” de Achebe (inclusive, aparecem muitas palavras nessa língua e há um glossário no final da edição), permeado por dizeres, provérbios e maneirismos que transformam a obra, nas palavras de Chimamanda, em uma verdadeira “celebração da língua” – o que é sempre uma camada de sabor a mais para quem se aventure no original. 

É lógico que a condescendência branca avidamente adotaria Things fall apart como peça etnográfica em cursos de antropologia, mas Achebe repetidas vezes se pronunciou contra isso, reafirmando seu trabalho como ficcional. Enfim, apenas outra condescendência do colonizador. Uma leitura mais atenta desse livro perfeito, no entanto, permite a interpretação do contato entre as superstições africanas e europeias como um contato entre iguais (que os europeus não veem assim: afinal, a religião dos brancos é a verdadeira). No final, a simetria que se vislumbra por trás da voz neutra e sóbria do narrador é arrasadora e eleva a obra a um rarefeito patamar de excelência. 


Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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