Como sabemos o que os outros sabem?

Como sabemos o que os outros sabem? Como sabemos que os outros sabem alguma coisa at all? 

Se, por exemplo, mostramos essa cena para uma criança, a Valentina: 

A mãe foi ao mercado e comprou uma caixa de doces.
O Enzo viu que a mãe colocou a caixa na geladeira.
O Enzo foi jogar Xbox.
A mãe mudou a caixa para o armário ao lado.

Aí você pergunta pra criança:
– Valen, onde o Enzo vai procurar a caixa?

Até uma certa idade, a pequena Valen vai responder: no armário, of course! Isso porque, a pequena Valen acha que o Enzo sabe tudo, porque ela sabe também… Um pouco confuso né? Mas não tanto, calma que eu vou explicar, na verdade, a Teoria da Mente explica isso.

A Teoria da Mente (ToM) é um termo que designa a nossa capacidade de atribuir estados mentais a nós mesmos e aos outros, ou seja, é quando nós entendemos que os outros têm mentes independentes das nossas, com intenções, razões, vontades e crenças próprias. É fácil de perceber, então, que essa capacidade tem direta influência com as nossas relações interpessoais.

Os estudos sobre ToM mostram que há diversos estados mentais que podem ser atribuídos a nós mesmos ou aos outros, como: intenções, sentimentos, desejos, conhecimento, atitudes e crenças, sendo a crença falsa (false belief) a mais difícil de ser atingida. Assim, foram feitos estudos com primatas para testar se estes apresentavam algum (ou alguns) nível(is) de estados mentais possíveis.

O termo ToM foi usado pela primeira vez por Premack e Woodruff em 1978 ao fazerem experimentos com alguns chimpanzés. Os pesquisadores expuseram os animais a uma série de vídeos em que atores (humanos) enfrentavam uma série de problemas, dentre eles: impossibilidade de acessar comida, impossibilidade de sair de uma jaula/cela, impossibilidade de usar um aparelho eletrônico pois este estava desplugado da tomada. Depois de passarem os vídeos para os chimpanzés, os pesquisadores mostravam uma série de figuras em que uma delas apresentava a solução para o problema, assim, eles teriam que escolher a figura certa. O experimento mostrou que, pela consistência na escolha das figuras corretas, os chimpanzés eram capazes de compreender os problemas em questão e mais além, podiam entender como os humanos deveriam agir para solucionar o problema. Por causa disso, Premack e Woodruff afirmam que os chimpanzés têm ToM. No entanto, podemos nos perguntar: se lidarmos com situações mais complexas, como a de crença falsa, por exemplo, qual seria o desempenho dos primatas?

Sabemos que a atribuição de crença falsa a um outro indivíduo é o nível mais complexo de ToM, mas, antes disso, o que é crença falsa? Vejamos a seguinte situação exposta a participantes de um teste (é parecida com a história do Enzo e da Valentina):

Maxi está ajudando sua mãe a guardar as compras. Num dado momento, ela coloca o chocolate dentro do armário verde. Maxi prestou bastante atenção para ver onde a mãe tinha guardado o chocolate. Depois de ajudá-la a guardar as compras, Maxi sai para brincar. A mãe de Maxi, enquanto isso, começa a fazer um bolo e ela precisa do chocolate para isso. Então, pega o chocolate que estava no armário verde, usa, e depois coloca-o no armário azul. Depois, Maxi volta para casa e quer comer o chocolate. 

Onde Maxi procura o chocolate? 

A ideia é que a participante perceba que o personagem Maxi tem uma crença falsa sobre onde está o chocolate. Desse modo, a participante do experimento deveria perceber que Maxi acredita que o chocolate está no armário verde, mas essa crença é falsa, na medida em que o participante sabe que o chocolate está no armário azul.

É evidente que a situação descrita acima é bastante complexa e pode se esperar que os primatas não humanos não reajam bem a esses estímulos. Nesse sentido, podemos ver que alguns animais têm certo nível de ToM, ou seja, têm consciência de si mesmo, além de capacidade de atribuir alguns estados mentais aos outros indivíduos. No entanto, quando se trata de questões mais complexas, essa capacidade de teorizar sobre a mente dos outros só está presente nos seres humanos.

Tudo bem, primatas não humanos não conseguem compreender essa situação, mas nós, que já estamos crescidinhos, conseguimos. Agora, pequena Valen ainda não… então, quando a criança adquire essa capacidade e o que isso tem a ver com linguagem? 

Um neurocientista e um psicólogo (Wimmer e Perner 1983) fizerem um teste em que apresentavam a história de Maxi, com intuito de investigar a compreensão de crença falsa por parte das crianças, ou seja, observar se a criança é capaz de representar os diferentes estados mentais da personagem, se é capaz de entender que o conhecimento que uma primeira pessoa tem sobre a realidade (é verdadeiro), mas difere do conhecimento equivocado de uma segunda pessoa. 

Em resumo, os resultados obtidos pelos pesquisadores mostram que é com cerca de 4 anos de idade que a criança começa a apresentar respostas satisfatórias para esse tipo de situação. Nesse sentido, vemos que, de fato, o nível de crença falsa é o último a ser adquirido pela criança, uma vez que a capacidade de inferir sobre o que se passa na mente dos outros parece ser bastante complexa. 

Desse modo, podemos pensar sobre qual é a relação da ToM com a linguagem. Mas, em primeiro lugar, é preciso fazer algumas considerações rápidas sobre as relações entre fenômenos cognitivos e linguagem. 

Assim, no que se refere a ToM, devemos pensar que capacidades linguísticas estão envolvidas na atribuição de estados mentais aos outros, e, mais precisamente, na compreensão de crenças falsas. 

Muitos trabalhos sobre isso já foram feitos e, em linhas gerais, o que se pretende observar é se a aquisição de algum componente linguístico (como um tipo de sentença específico, por exemplo) é necessária para a aquisição de determinado estado mental. Sentenças “encaixadas” são, normalmente, alvo desses estudos, na medida em que por meio dessas estruturas podemos expressar as crenças falsas: 

A mãe sabe que o Maxi sabe que o chocolate está no armário azul?
Maxi pensa que o chocolate está no armário verde.  

Há, a grosso modo, duas posições em relação a isso: a da relação indireta, em que a aquisição de certas estruturas sintáticas não é condição para aquisição de estados mentais; e a da relação direta, em que a aquisição de certos estados mentais só se dá com a aquisição de determinadas estruturas sintáticas.

A ideia aqui não é esgotar a discussão sobre isso, pelo contrário, é apenas traçar um panorama geral do que se sabe até agora sobre a relação entre ToM e linguagem. 

Desse modo, o pouco que sabemos sobre o funcionamento do cérebro só nos faz ter a certeza de que ainda há muito o que estudar. Mas fato é que nós humanos adultos temos ToM, ou seja, temos a capacidade de auto reconhecimento e de atribuição de estados mentais para as outras mentes. Então, afinal, como é que sabemos o que os outros sabem? 


 

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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