A terra inabitável – Uma história do futuro

Imagine um mundo de economia descarbonizada, de infraestrutura energética toda remodelada a partir de projetos de alta tecnologia e cooperação internacional, cujos habitantes encarem o consumo indiscriminado de carne com as mesmas ressalvas com que tratam o consumo de drogas ilícitas. Nesse cenário futurístico com ares de cyberpunk idílico, o agronegócio não mais ditaria as regras da produção de alimentos a partir das suas próprias necessidades de água ou de injeção lucrativa de substâncias tóxicas em seus produtos, haveria painéis solares, instalações eólicas e anti-industriais, para captura do carbono já despejado na atmosfera, do tamanho de cidades inteiras. 

As crianças desse novo mundo aprenderão na escola sobre um passado em que as quimeras do conforto consumista eram o verdadeiro deus que milimetricamente guiava as ações dos indivíduos, cada um despejando sua cota de combustível fóssil no ar respirável e de plástico nos oceanos vivos (elas aprenderão que houve um tempo em que havia uma ilha de lixo duas vezes maior que o estado do Texas em pleno Pacífico). Elas estudarão geografia antiga e farão seus estudos do meio em cidades submersas, escrevendo ensaios sobre por que seus ancestrais construíram tão perto da costa para depois derreter os polos de gelo. O cuidado com o delicado equilíbrio do planeta será tão óbvio quanto hoje é obvio que usar crack não é um comportamento sustentável. 

É claro que um mundo desses só pode ser pós-apocalíptico. 

Ao ler A terra inabitável – Uma história do futuro, de David Wallace-Wells, livro que é na verdade uma grande compilação das mais recentes pesquisas sobre o clima (suas seções têm nomes como “Calor letal”, “Fome”, “Incêndios florestais”, “Ar irrespirável” etc., cada uma narrando os prováveis impactos de nossos descuidos com o planeta sobre a futura população mundial), parece inevitável que o apocalipse está a caminho. Seja na forma de uma erradicação completa ou de uma total ressignificação da existência humana (o que serão os conflitos religiosos, quando países inteiros ficarem sem água? O que serão as ideologias e preconceitos, quando o ar se tornar irrespirável? Como se defenderá o crescimento como modelo absoluto, quando as economias colapsarem?).

Apesar de toda a desinformação, de todos os truques de retórica, do negacionismo como um todo e do que deriva das mitologias mais diversas (Jesus Cristo voltará ou os cientistas possibilitarão esse salto evolutivo que nos levará a uma pós-humanidade tecnológica antes do colapso climático), os fatos são inequívocos: estamos no meio de uma grande extinção em massa; nossas tendências são suicidas e, hoje, queimamos 80% mais carvão que em 2000; ainda que nossas emissões de carbono cessem instantaneamente, a projeção de aquecimento para o final deste século, considerando tudo o que já despejamos na atmosfera, é de 2ºC, ou seja, um aumento de 13% na temperatura média atual da Terra (se você acha que 2ºC não é tanto assim, experimente viver um mês com uma febre de 38,5ºC); os governos não parecem comprometidos com os protocolos que firmaram no final do século passado, os negacionistas nunca tiveram tanto poder político e as mudanças homeopáticas de estilo de vida propostas por ambientalistas bem-intencionados são tão insignificantes quando confrontadas com o quadro completo que acabam se tornando mais simbólicas e conscienciais do que de fato eficazes. O cenário não é nada bom para as gerações futuras, e um deus ex machina parece ser a esperança secreta dos 7 bilhões de seres humanos que partilham o planeta neste momento. 

Wallace-Wells, nesse livro realmente aterrorizante, conta uma história do futuro estranhamente reconhecível a qualquer cidadão informado do século XXI. Século em que chegamos montados nas narrativas difusas das democracias neoliberais abastecidas por uma queima frenética de combustível fóssil (a história do progresso pós-Revolução Industrial, defende Wallace-Wells, é a história da queima do combustível fóssil). Claro que esse progresso que testemunhamos no nosso cotidiano, conforme convincente e apaziguadoramente arrola o livro do linguista Steven Pinker, O novo Iluminismo, trouxe inúmeras vantagens no que diz respeito à nossa experiência da vida: hoje vivemos mais e com mais conforto do que viviam nossos antepassados não muito tempo atrás. Mas a que custo? Pinker é também um otimista ambiental, e seu capítulo sobre o meio ambiente deposita uma fé na engenhosidade humana que eu gostaria de ter (mas que infelizmente parece estar por trás de todas as nossas desculpas protelatórias). 

Ronald Wright, historiador canadense autor de Uma breve história do progresso, de 2004, aborda a mesma questão partindo de um ponto diferente: ele lista uma série de eventos de extinção autoimputada por civilizações que destruíram o meio onde viviam por descontrole contínuo e uso indiscriminado dos recursos disponíveis. Seu argumento é convincente e sua palavra final é uma exortação em meio aos escombros: “agora é a nossa última chance de acertar o futuro”.

Wallace-Wells pende mais para Wright do que para Pinker. Seu livro também é uma exortação. Se é uma questão de fé, de acreditar ou não nas previsões da melhor ciência que conhecemos, talvez esteja em vias de se tornar um clássico “pagar para ver”. O preço, porém, será altíssimo e cobrado em vidas humanas. 

Obs.: Na última mesa do sábado, na programação principal da Flip 2019, Wallace-Wells dividiu a palavra com Cristina Serra, autora de Tragédia em Mariana – A história do maior desastre ambiental do Brasil, e o tom de denúncia foi claro. Serra chega a dizer sobre esse criminoso ambiental que foi eleito chefe do Executivo em nosso país, sem meias palavras, que ele “dá todos os sinais errados pra sociedade”. A conexão entre as duas obras, uma mais local que a outra mas ambas interligadas como todo o ecossistema também está, enriqueceu muito os debates dessa Flip que foi marcada por muitas manifestações de polarização política. Para começar, o nome da mesa, Cocorobó, refere-se a um açude construído em Canudos, cujas ruínas muito simbolicamente vêm à tona em momentos de seca. Conjugar o homenageado Euclides da Cunha e o episódio de Canudos com questões ambientais num momento como este da história do país, em que convulsionam nossas percepções republicanas, foi mais um momento especial dessa festa linda que celebra a literatura. E a arte, como sabemos, é umas das poucas coisas que podem ser uma boia de salvação no apocalipse. 

A foto em destaque é do nosso parceiro Caio Lima, do Rede de Intrigas
https://www.rededeintrigas.com/
@rededeintrigas

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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