Literatura e ciência na Flip 2019

De Paraty, por Caio Lima

É provável que a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) jamais tenha abordado ou entregue à ciência a maior parcela do evento como o fez em 2019. Existe uma força basilar, uma ideia geral que enquadra a literatura como consumível, intelectual ou diletante; por outro lado, raramente houve exercícios ou movimentações para facilitar ou harmonizar qualquer tipo de abertura nesse “senso comum” e que lide com a produção científica a priori; apesar de sempre convidados a participar da festa, jamais foram protagonistas.

Alguns expoentes ligados à divulgação científica são destacados no mercado, sucesso de vendas, sim; porém estes são por muitas vezes tratados – erroneamente – pela pecha de “ciência pop”, resultando num movimento insuficiente para consolidar a tal abertura acadêmica: a conexão entre o público leitor e a produção científica.

A máquina literária, portanto, parece girar no sentido inverso à divulgação científica, como se o não ficcional relacionado às diversas áreas do conhecimento fosse incapaz de transgredir a barreira acadêmica para abraçar o grande público — diverso, plural e naturalmente festivo — que toma conta das ruas da cidade, recentemente eleita patrimônio cultural e natural da Unesco.

Afasta-se do nicho o não ficcional baseado nos escritos-do-eu (autobiografias e diários, por exemplo) e livros-reportagem, que sempre foram carros-chefes das editoras e livrarias.

Considerada por muito tempo uma “festa do intangível”, feita apenas para a pequena e privilegiada parcela intelectual do país, críticos ganhavam voz e razão ao interceder por uma Flip mais humana e plural. O processo, é claro, não aconteceu do dia para a noite, tampouco se encontra plenamente estabelecido.

As duas últimas edições, que homenagearam Lima Barreto e Hilda Hilst respectivamente, foram encabeçadas pela curadoria da Josélia Aguiar, que conseguiu trazer ares mais democráticos à festa e, em consequência, reanimar a cidade. Avanços enormes foram feitos. Espaços foram ocupados e conquistados.

A ambientação da literatura e a pluralidade das manifestações literárias foram a bola da vez. Muito se foi discutido acerca da literatura produzida para além de aspectos literários técnicos tão somente, chegando à forma como é idealizada a sociedade a partir da perspectiva da reação do eu em relação à minha realidade, reafirmado como cerne criativo do literato, da literatura e do leitor. O debate seguiu próximo aos corpos leitores e ouvintes das palavras; e os espaços foram tomados por uma mentalidade mais inclusiva, acolhedora e plural. Avanços enormes, impensáveis há poucos anos, mas ainda insuficientes para tornar um evento literário algo popular em plenitude.

Há de se ter em mente que a literatura é um manancial para a análise do tempo. Em todas as derivações, estilos e formas possíveis, a literatura é uma ferramenta para análise de recortes profundos — sociais, culturais, econômicos, entre outros — em potencial. Os caminhos abertos por Josélia e equipe, portanto, fazem parte da nova construção, ou melhor: da reconstrução, de uma nova ideia de alcançar o povo, de fazer da Flip uma casa para abrigar o tempo, o corpo, o povo e as mais diversas áreas do conhecimento.

Fernanda Diamant, jornalista, editora e nova curadora da festa, deu um passo arriscado para a Flip 2019: tirar a produção acadêmica do ostracismo, dos papéis de figuração, e colocá-la como centro das discussões.

Para tal homenageou Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, livro seminal da cultura brasileira e que configura uma ideia literária e científica de Brasil — e o risco dos erros determinísticos e preconceitos assumidos e comprovados por parte de Euclides. Os Sertões, entretanto, é capaz de organizar em torno de si a literatura e a ciência, de gerar alguma harmonia multidisciplinar capaz de só fazê-lo entendível se amplamente discutido, se todos os aspectos, recortes e vieses forem trabalhados em conjunto. Incluso a figura controversa de Euclides da Cunha que, se analisado como homem contemporâneo ao seu tempo, é outra parte componente do matiz infindável de Os Sertões.

O livro torna-se rapidamente exemplo de elemento literário aglutinador das questões materiais do cotidiano, do registro da memória, do que é publicado no jornal, do que é prático, do que é guerra, do que deve avançar como desenvolvimento e bem-estar da sociedade, do que é retrocesso e também do homem que reflete e documenta o próprio tempo. Desmembrar e tornar Os Sertões um braço da ciência para sustentar a inclinação da Flip para a divulgação científica foi um golpe de risco e, ao que parece, um golpe certeiro.

Se, à primeira vista, a designação científica da programação principal atraiu olhares duvidosos e causou estranhamento nos que gostam da festa, acabou por ganhar sustentação num momento vital para a discussão profunda sobre a relevância da produção científica no Brasil. A Flip se volta à ciência no justo momento em que há um plano nefasto em andamento que prevê o desmonte das universidades federais no país. Bolsas e programas de pesquisa foram dizimados e é corrente a construção do sentimento de abjeção por quaisquer estruturas ou personas responsáveis pela educação — principalmente os professores, já há muito sucateados pelo Estado.

Walnice Nogueira Galvão, professora, crítica literária e sumidade no que tange à obra de Euclides da Cunha, abriu a festa e falou sobre a interseção do seu — ainda contínuo — processo de estudo e entrega à pesquisa e à produção científica com o positivismo científico de Euclides, relacionando a atualidade de Os Sertões nos mais diversos âmbitos da “antiga” e da “nova” república. Duas pontas de uma corrida pela contextualização do tempo e o que o tangencia. O tom de toda a Flip foi dado desde o primeiro momento.

A programação seguiu com o levante incansável em prol de uma ciência que fosse valorada como literatura e de uma literatura que pudesse se encontrar dentro da vida, que pudesse ser abraçada como algo factível, concreto e presente, longe do intangível de outrora.

Romances como o da nigeriana Ayòbámi Adébáyò, autora de Fique comigo (comentado aqui), que dividiu uma mesa com a israelense Ayelet Gundar-Goshen, geraram discussões mais profundas acerca da representatividade e manifestação políticas como registro memorial do tempo, como uma representação da realidade adaptada à ficção. A aproximação do livro para com a tradição, o contemporâneo, o político e a memória sem jamais perder o enfoque literário facilita a justaposição do eu-leitor em relação às personagens e situações expostas pelo romance. A projeção do real para dentro do contexto literário torna mais natural o exercício de mínima compreensão, senão empatia.

Em contrapartida houve a apresentação de A terra inabitável – Uma história do futuro, por exemplo. Livro devastador de David Wallace-Wells (também comentado aqui) que reúne dados de diversas pesquisas para atestar o processo de extinção autoprovocado pela humanidade ao expropriar recursos naturais indiscriminadamente com danos irreversíveis ao meio ambiente. Ao dividir a mesa com a jornalista Cristina Serra, autora de Tragédia em Mariana – A história do maior desastre ambiental do Brasil, o tom historiográfico do abuso e negligência ambientais e suas consequências em eventos recentes, com proporções locais e globais, as visões micro e macro ajudam a projetar ao público a necessidade de aprofundar e conhecer o todo que nos cerca para além da simples denúncia.  

Decerto ainda não é possível afirmar o quão certeira foi a aposta da curadora Fernanda Diamant ao homenagear Euclides da Cunha e entregar ao público uma festa voltada à ciência e à produção acadêmica, grande protagonista da Flip 2019; mas de antemão é possível afirmar que existe mais uma ponte construída e que deve tomar corpo de maneira urgente: a produção científica é resistência e a ciência deve servir ao povo, como literatura e prática.

Caio Lima é dono do blog de literatura e sebo Rede de Intrigas (rededeintrigas.com – nosso parceiro de conteúdo e alma). Autor do livro Nada vira do avesso sozinho, da Vilarejo Metaeditora, é um agitador cultural que produz rap e escreve sobre cultura underground.

falando sobre tudo, menos logaritmo.

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