Somos julgados pelo nosso jeito de falar?

“Quando eu era pequeno, disse Seaman, não lembro que as crianças usassem arame na boca. Hoje não conheço quase nenhuma que não o ostente. O inútil se impõe não como qualidade de vida mas como moda ou distintivo de classe, e tanto a moda quanto os distintivos de classe necessitam de admiração, reverência.” (2666, Roberto Bolaño)

Nesse parágrafo do livro 2666, Roberto Bolaño fala dos distintivos de classe. Distintivos de classe são aquelas características que nos permitem julgar uma pessoa – com praticamente 100% de certeza de estarmos certos, diga-se de passagem – baseado nas características que ela apresenta: jeito de vestir, jeito de andar, jeito de falar… Esse julgamento é, muitas vezes, inconsciente, mas quando paramos para pensar, em que nos baseamos para fazer tais afirmações?

Esse vídeo, por exemplo, mostra um experimento feito no MACBA (Museu de Arte Contemporânea de Buenos Aires) chamado almost identical. No experimento, tinha 5 duplas de irmãos gêmeos idênticos, com apenas uma diferença: um deles estava mascando chicletes. Os gêmeos, então, ficavam sentados lado a lado e os visitantes do museu eram convidados a sentar na frente dos gêmeos. Esses visitantes ouviam em um headphone algumas perguntas do tipo: “Qual dos dois parece ter mais amigos?”, “qual dos dois parece ter mais amigos imaginários?”, “qual desses dois chefes te daria um aumento”, “qual desses dois te demitiria se pedisse um aumento?”.

De modo geral, os gêmeos que estavam mascando chicletes foram julgados como pessoas mais legais porque passavam uma imagem de serem mais “descoladas” e “amigáveis”. Essa campanha procurava mostrar que nem todos os estigmas negativos com relação ao ato de mascar chiclete se confirmavam.

Mas agora, a língua que falamos – ou até o dialeto que falamos – pode ser um distintivo de classe? Ou seja, as pessoas nos julgam com base no nosso jeito de falar?

Inglês x Francês

Quatro pesquisadores fizeram estudo em Montreal (Canadá) que ilustra bem essa ideia. Lambert e outros pesquisadores canadenses, em 1960, gravaram 10 pessoas bilíngues (inglês-francês) lendo um texto de natureza filosófica, nas duas línguas. Essas gravações foram modificadas para que a voz dos falantes não fosse reconhecida. Depois disso, os pesquisadores mostraram as gravações para estudantes falantes de inglês, e falantes de francês.

Esses falantes foram julgados pelos estudantes em algumas categorias, como: altura, capacidade de liderança, inteligência, religiosidade, autoconfiança, bondade, sociabilidade, caráter…

Como os pesquisadores esperavam, em linhas gerais, os estudantes falantes de inglês julgaram as gravações em inglês com características mais positivas, mas, a surpresa veio no fato de que os estudantes falantes de francês também julgaram as gravações em inglês com mais características positivas. (Você pode encontrar resultados mais detalhados nesse artigo aqui)

Essa experiência mostra que muitas vezes, os tais distintivos de que Roberto Bolaño falou em seu livro não estão relacionados apenas a características físicas, como a moda, por exemplo, mas também estão relacionados à língua que falamos.

Isso foi feito no Canadá; será que algo similar se aplicaria ao Brasil? Uma professora da Unicamp fez um trabalho parecido sobre a pronúncia do /r/ (aquele em porta, sabe?) na cidade de São Paulo.

O nosso /r/ carrega distintivos de classe?

Livia Oushiro (2015), em sua tese de doutorado, analisou as gravações de mais de uma centena (:O!) de falantes paulistanos. Uma dessas análises foi um estudo de percepção e avaliação (assim como o estudo no Canadá). Para esse estudo específico, a pesquisadora recontatou 4 falantes e pediu para eles gravarem algumas frases (que eles já tinham falado naturalmente nas primeiras entrevistas) falando o /r/ de dois jeitos diferentes: tepe (como nesse vídeo aqui que o Marcelo Adnet e a Dani Calabresa imitam um sotaque normalmente reconhecido como paulistano) e retroflexo (como nesse vídeo que o Adnet, de novo, imita o “paulistano do interior”).

Depois de gravar os falantes, a pesquisadora mostrou os estímulos para participantes que moram em São Paulo e pediu, num primeiro momento, para que comentassem o que achavam dos falantes, e, num segundo momento, usou uma ficha com várias características listadas. Assim, os participantes deveriam julgar, numa escala de mais e menos, os falantes.

Um resultado bem legal, por exemplo, foi o de uma mesma falante que foi julgada como “paty de Higienópolis” ao usar o tepe como e “maloqueira da zona leste” ao usar o retroflexo.

Em resumo, os resultados mostram que algumas características relacionadas ao status do falante “simples” e “trabalhador(a)” foram correlacionadas ao uso do retroflexo. Já características de status como “articulado(a)” e “sofisticado(a)” foram relacionadas a falantes usando tepe.

A autora faz uma análise bastante detalhada (que você pode ver aqui), mas, de maneira geral, no português, nesse caso em SP, podemos ver que o nosso jeito de falar carrega sim distintivos sociais.

Então, os tais distintivos sociais, dos quais falava Bolaño em sua obra, compreendem não só o que podemos ver – o uso de aparelho nos dentes, de uma roupa da moda, o hábito de mascar chicletes – mas compreendem também o que podemos ouvir: a língua que falamos, também os vários jeitos que falamos um mesmo termo da língua – as chamadas variantes – também fazem parte de como percebemos a realidade a nossa volta, e não só a percebemos, como também avaliamos e reagimos a ela.

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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