O irmão alemão

A notícia de que Chico Buarque era o novo vencedor do prêmio Camões, o mais prestigioso da língua portuguesa, demorou para chegar até ele: seus editores e amigos tentaram contato por horas, enquanto ele estava desconectado e inalcançável curtindo seu pré-aniversário em Paris. Quando finalmente ficou sabendo da honraria, respondeu com modéstia que se sentia “honrado por seguir os passos de Raduan Nassar”.

Chico não precisava de mais reconhecimento mundano para se firmar nas vitrines da cultura brasileira como o que ele é: um gênio raro. Trovador calejado, atravessou décadas a fio no topo do panteão da MPB, sendo inclusive apontado por muitos como única unanimidade nacional: mesmo que você não ouça o Chico, você respeita o Chico. E tem aquela: se você fala mal do Chico, isso diz mais sobre você do que sobre o Chico.

Há quem diga que ele tem voz de taquara rachada, mas mesmo os mais implicantes sabem de cor, desavisadamente, mais de uma de suas canções (sejam versões de Caetano ou Nara ou Milton), daquele jeito que se sabem as canções incorporadas tão profundamente na cultura que elas viram parte da paisagem folclórica por muitas gerações. De qualquer maneira, não consta que alguma vez ele tenha ambicionado ganhar o The Voice. Para os muitos fãs, a voz do Chico é única e a única capaz de interpretar a impecável poesia de suas letras até a medula. É a voz de um grande compositor tímido. E soa bem: insubstituível, timbres únicos, conhecimento e emoção justapostos: competência.

Muito semelhante é a voz do Chico como escritor de literatura. Seu timbre a distingue das outras por transitar numa área de delicado equilíbrio e por ser a voz de uma escolha, de um erudito produzindo arte pop.

Há bastante coisa em comum nos livros de prosa de Chico Buarque: a primeira pessoa e o desajuste do protagonista são as recorrências que mais chamam a atenção, além da sempre presente (e muito característica) espiral de acontecimentos possíveis, onde o imaginário é contado no futuro do pretérito e já não podemos ter certeza do que foi e do que seria. E tem também a vertigem: em Estorvo somos sugados pelo olho mágico que na verdade é um túnel de loucura, em Budapeste somos apresentados a um homem obcecado pela língua húngara, em Leite derramado somos ouvintes das reminiscências de um moribundo delirante e em O irmão alemão lemos a história de um filho preterido, amante preterido e amigo preterido. Benjamim não é narrado em primeira pessoa mas o desajuste se escancara na obsessão por Ariela Masé/Castana Beatriz.

Chico se esconde atrás desses homens de fraca vontade, que são arrastados pelas circunstâncias de maneira quase irritante. Talvez para um gostinho de anonimato (diz o protagonista de Budapeste ser “tão zeloso do próprio nome que por nada neste mundo abriria mão do anonimato”), os coloca em situação de marginalidade social.

Neste O irmão alemão, um episódio da família Buarque de Holanda serve de pano de fundo a uma ficção repleta desses elementos buarquianos. Ciccio, em primeira pessoa, narra sua busca por um filho que seu pai (no livro, Sergio de Hollander) teria deixado na Alemanha entre 1929 e 1930. O meio irmão existiu de fato e o pai foi realmente um intelectual respeitado, proprietário de uma imensa biblioteca. E são esses os acontecimentos certos garimpáveis.

Ciccio é inseguro, vive à sombra de Mimmo, o irmão mais velho, e, como um rato, presta furtivas visitas aos livros proibidos do pai. Passa grande parte da sua vida inventando histórias sobre esse irmão alemão, assunto vetado no seio familiar. Quando se dá conta, sobreviveu aos pais e ao irmão e já não tem amigos. Apenas sua curiosidade persiste. E então chega a parte que é o grande charme do livro  (e aqui ficção e realidade se misturam): descobrimos que o meio irmão de Ciccio/Chico teve uma breve carreira de cantor na Alemanha. Ou seja: a veia de Sergio de Hollander/Buarque de Holanda gerou artistas em cantos distantes e situações diferentes, como se tivesse passado à frente um chamado genético irrevogável. Imagino como o Chico deve ter se emocionado ao descobrir isso já aos setenta anos de idade, e entendi o livro de ficção que ele escreveu para falar sobre essa história. Achei bonito.

Achei bonito também que nosso grande poeta carioca, sambista melodioso e cronista arguto da vida brasileira, voz que cantou contra o período tenebroso de uma ditadura militar, tenha trazido para o Brasil nada menos que um merecido Camões.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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