A terceira vida de Grange Copeland

Há dois dias (segunda-feira, 18/05/2020), João Pedro Matos Pinto foi assassinado pela Polícia no Rio de Janeiro. João Pedro estava dentro da sua casa. Em casa. Um lugar que, como direito humano básico, deveria ser seguro. João não é o único. Numa rápida busca na internet, é fácil achar centenas de casos semelhantes. Isso mostra que, no Brasil, as vítimas da violência têm cor.

Uma dura coincidência: A terceira vida de Grange Copeland, de Alice Walker, é também sobre a violência estrutural que assola a sociedade. No caso, a norte-americana que, nesse sentido, não é diferente da brasileira. Nesse livro de narrativa tradicional e sem firulas, notamos o talento verbal de Walker ao retratar a história da família Copeland. Grange, o pai; Margareth, a mãe e Brownfield, o filho. No decorrer da história, conhecemos também a família que Brownfield formou: Mem, sua esposa, Daphne, Ornette e Ruth, suas filhas.

Grange é um péssimo pai e um marido negligente, é um homem bêbado e asqueroso, vítima da violência estrutural contra negros no sul dos Estados Unidos da década de 1950. Brownfield cresce com essa figura paterna na casa e jura ser exatamente o oposto de seu progenitor. É aí que conhece Mem, que será sua esposa até o fim da vida dela. Mem tem mais escolaridade que Brownfield, o que, no início, é visto por ele como algo positivo, mas, ao longo da vida, ele passa a se sentir impotente perto dela, e a obriga a abrir mão do emprego como professora para ser apenas a esposa empregada dele. 

Ao acompanhar a vida de Brownfield, vemos que, fora de casa, na plantação de algodão em que ele trabalha, é vítima da violência racista e estrutural que compõe a sociedade americana (escrevo no presente porque, mesmo com as transformações da sociedade norte-americana, a divisão quase que por castas étnicas ainda é realidade no país). Por ser vítima da dominação branca fora de casa, Brownfield, a fim de mostrar seu “poder” masculino, se torna um pai e marido abjeto; o abusado se torna o abusador.

Nesse sentido, quem ocupa a camada mais baixa dessa divisão em castas são as mulheres negras, no livro, representadas pelas personagens de Mem, Daphne, Ornette e Ruth, principalmente. Não vou trazer spoilers aqui, mas por mais difícil que sejam as vidas de Grange e Brownfield, Mem, Daphne, Ornette e Ruth sofrem em dobro: por serem negras em uma sociedade dominada por brancos, e por serem mulheres numa sociedade dominada por homens.

Apesar de o título do livro levar o nome do patriarca da família Copeland, ele não é o personagem principal em todos os momentos. Com sua escrita pujante e direta, Alice Walker consegue trabalhar os dramas, sofrimentos, privações, e eventualmente algumas felicidades, de vários personagens, e, com maestria, conecta tudo com as três vidas de Grange Copeland.

Com uma compreensão refinada do sofrimento humano, Alice Walker nos embrulha o estômago, expõe o feio, o ruim e o violento em nós. Leitura essencial, daquelas que nos faz refletir sobre como nossas atitudes – mesmo sendo pessoas que estão constantemente revendo práticas e preconceitos – podem, ainda que inconscientemente, contribuir para a sociedade violenta em que vivemos.

Ainda em tempo, como linguista, PRECISO falar sobre a linguagem do livro e algumas escolhas da tradução:

Muitos estudos sociolinguísticos indicam que, nos Estados Unidos, de modo geral, brancos e negros falam de modos diferentes. Os traços do inglês negro (ou African American Vernacular English – AAVE) estão amplamente descritos nos estudos científicos realizados pelos sociolinguistas –  é só entrar no Google Scholar e jogar “African American Vernacular English” que você vai achar um mundo de pesquisas.

No livro, Alice Walker tomou o cuidado de retratar esses traços nas falas das personagens. Inclusive, em diversos momentos, a língua é também um personagem da história:

“Brownfield estava determinado a destruir a mulher terna com que havia se casado. Mas antes de destruí-la, decidiu mudá-la. E foi o que fez. […] A primeira coisa com a qual implicou foi sua forma de falar. No início do casamento Mem o corrigia, mas pouco tempo depois isso começou a irritá-lo. Não tolerava ser depreciado em casa depois de voltar de um trabalho que exigia que respondesse a todas as ordens de cabeça baixa. Quando ela corrigia gentilmente seus erros de concordância, ele jogava a correção na cara dela.” (p. 84)

Como sociolinguista e até onde consigo avaliar uma tradução, acredito que as tradutoras Carolina Simmer e Marina Vargas foram felizes em suas escolhas (inclusive explicadas na Nota de editora no início da edição) de tradução dos traços do AAVE para o português. No entanto, vale ressaltar que há erros conceituais importantes na revista que acompanha o kit da TAG. No texto de Maurício Lobo para o prefácio da obra, o autor fala em “variações linguísticas que indicam um nível de escolaridade baixo”. Porém: 1) não é possível falar em “variações” no plural. Variação é uma característica intrínseca às línguas: todas as línguas variam e mudam, portanto, variação linguística (e não variações); 2) o AAVE, falado pelas personagens de Walker, não indica, necessariamente, baixo nível de escolaridade. É fato que há diferenças nas taxas de escolaridade da população negra em relação à população branca, no entanto, o AAVE não se restringe a pessoas de escolaridade baixa, mas a pessoas negras: Michelle Obama, por exemplo, advogada formada em Princeton e Harvard (duas universidades da Ivy League) e ex-primeira dama dos Estados Unidos, é uma falante fluente de AAVE. 

Erros desse tipo não podem passar batidos. Quando a variação linguística é uma personagem da obra, contratar um sociolinguista para dar aquela revisada no material é também apoiar a ciência e a pesquisa em Linguística e Humanidades e no Brasil. Deixar isso quieto e achar que é só uma diferença entre singular/plural é também uma forma de corroborar com o sucateamento e o desmonte da educação e do conhecimento científico no país.

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

1 Comment

  1. […] já expliquei nesse post aqui, quando dialetos e a variação linguística são fatores constituintes da obra, contribuindo tanto […]

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