O morro dos ventos uivantes

Escrito por Emily Brontë e publicado em 1847, ainda sob um pseudônimo para encobrir a autoria feminina, O morro dos ventos uivantes se tornou um clássico da língua inglesa e da literatura mundial. Mas o que faz dele um clássico?

Um primeiro ponto pode ser a técnica de Emily Brontë ao trabalhar a narrativa. A história do amor diabólico entre Catherine e Heathcliff, bem como todos os terríveis acontecimentos em Wuthering Heights e Thrushcross Grange, é narrada incialmente do ponto de vista da uma das empregadas das propriedades, a Sra. Nelly, e em outros momentos, o Sr. Lockwood, locatário de Thrushcross Grange é quem narra o que ouviu de Nelly. Ou seja, ele está narrando o que ouviu alguém falar. E esse alguém, por sua vez, não presenciou todos os acontecimentos, em alguns casos, ouviu ainda outra pessoa contando o ocorrido. Tudo isso contribui para o clima de assombroso do romance, já que fica difícil confiar em qualquer pessoa, – até porque Nelly parece, estranhamente, estar presente sempre que algo bizarro acontece, por “melhores” que sejam as intenções dela. Então, todos na história parecem suspeitos de atitudes, no mínimo, duvidáveis.

Outro ponto que coloca a obra como inovadora para o seu tempo é o tratamento linguístico empenhado por Emily Brontë tanto na construção das personagens quanto no andamento da narrativa. A história se passa em Yorkshire, uma região ao norte da Inglaterra, cujo dialeto predominante é bastante diferente do inglês padrão. Além de fazer uma diferenciação de classe social e escolaridade entre os empregados (falantes de Yorkshire) e patrões (falantes do inglês padrão), Emily Brontë também usa essas duas variedades do inglês para contribuir para o declínio de uma das personagens do romance. Nesse sentido, a diferenciação dialetal trabalhada pela autora com maestria colabora notoriamente para construção de camadas de interpretação do romance.

Alguns trechos do romance podem ilustrar (sem muitos spoilers):

Em um certo ponto do romance, Nelly, a governanta, se reencontra com um de seus pupilos, que antes era um “patrãozinho” agora é um empregado. Ela pergunta:
“Who has taught you those fine words, my bairn?” I inquired. “The curate”?
E a resposta vem:
“Damn the curate, and thee! Gie me that,” he replied.
(em inglês padrão seria algo como “Damn the curate and you, Give me that!)

Só um trechinho já nos permite ver que Emily Brontë trabalhou na grafia das palavras da personagem para representar traços linguísticos do dialeto de Yorkshire. Mas, caso ainda não esteja convencido, nesse outro trecho, Catherine e Linton estão conversando sobre uma personagem que está num nível social e educacional abaixo deles:

“Have you noticed, Catherine, his frightful Yorkshire pronunciation?”

Nesse trecho, fica evidente a importância do dialeto de Yorkshire para certo aprofundamento nas camadas de interpretação do romance. 

Com relação a isso, a questão que se coloca é: como traduzir isso para o leitor brasileiro?

Muitas editoras, como a Zahar, por exemplo, fizeram uma nota de rodapé (a nota 2 nessa edição da foto) e só. Escolheram ignorar a questão linguística e, num certo sentido, o que o leitor brasileiro tem é uma versão adaptada do romance. 

A tradução do primeiro trecho na edição da Zahar é:
“Quem lhe ensinou a falar assim, menino? – perguntei – Foi o pároco?”
“Quero mais é que o pároco vá para o inferno, e você também! Me dê logo isso.”

Ou seja, não há diferenciação nenhuma em COMO as personagens fala, e o leitor pode ser levado a achar que a pergunta de Nelly tem a ver apenas com as palavras de baixo calão que agora são empregadas por essa personagem. Mas não, não é apenas uma questão de palavrão, essa personagem também está sendo julgada por sua pronúncia, seu sotaque.

O trecho dois é traduzido pela Zahar do seguinte modo: “Já notou, Catherine, o horrível sotaque dele?” Novamente, sem nenhuma menção a Yorkshire.

Diferentemente, a Martin Claret resolveu propor uma solução. Para o trecho um a tradução é:

“Quem ensinou essas lindas palavras para você, filhote?” Perguntei “O cura?” 
“Pros diabo c’o pastor e c’ocê! Me dá isso!”
E no trecho dois: “Você já reparou, Catherine, no pavoroso sotaque de Yorkshire que ele tem?”

Estranhamente, a solução proposta pela Martin Claret, apesar da questão estética e da falta de consistência ao longo da obra, parece ser um começo para não ignorar o Yorkshire. Não é a ideal, já que as escolhas de grafia para representar o Yorkshire não são exatamente bonitas de olhar e às vezes acabam até remetendo ao Chico Bento (como apontou o Caio do @rededeintrigas). Mas, fato é que essa edição, pelo menos, não ignorou algo tão importante para a interpretação da obra.

É preciso dizer que, por se tratar de uma questão sociolinguística (Sociolinguística é a área da Linguística que trata da língua em seu contexto social e cuida, em linhas gerais, do estudo empírico dos processos de variação e mudança linguística, inerentes a todas as línguas naturais), a Martin Claret pecou em não consultar um sociolinguista profissional, e o prefácio da edição conta com vários erros conceituais, que, novamente, poderiam ser facilmente resolvidos por um estudante, ainda que da graduação e bolsista de Iniciação Científica em Sociolinguística. 

Como já expliquei nesse post aqui, quando dialetos e a variação linguística são fatores constituintes da obra, contribuindo tanto para construção de personagem como para andamento da narrativa, é preciso que um especialista em dialeto e variação linguística seja, no mínimo, considerado. Não fazer isso é validar e contribuir para a perda de legitimação do saber científico no Brasil e corroborar com o discurso de que as únicas formas de ciência que “levam o país para frente” e, portanto, devem ser consideradas são as ciências exatas, enquanto os pesquisadores em Linguística e Humanidades são apenas um bando de desocupados fazendo balbúrdia com dinheiro público. De nada adianta postar #elenão e não apoiar a ciência no Brasil.

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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