O fim da eternidade

— Grande Tempo! – murmurou Cooper.

— Mas isso não é nada. Alguns Eternos já passaram do Século 150.000.

— E como é lá?

— Diferente de tudo — respondeu Harlan, taciturnamente. — Muitas formas de vida, mas nenhuma humana. O homem desapareceu.

— Morto? Dizimado?

— Não sei e ninguém sabe exatamente.

Neste livro, Asimov explora a ideia de viagens no tempo de maneira bastante elástica e milhares e milhares de séculos são abarcados pela tecnologia de transporte temporal imaginada pelo autor. Talvez isso seja o grande trunfo da história: a visão panorâmica do desenvolvimento da humanidade, dos primórdios (ou Primitivo) ao século 150.000. Questões culturais, filosóficas e científicas vão se constituindo em tecido para a trama genial que só um intelecto como o de Asimov seria capaz de conceber, e cada aspecto de cada conceito apresentado parece ter sido ponderado à exaustão (não há campo lógico mais minado que o de viagens no tempo e seus muitos paradoxos possíveis, mas Asimov desenvolve uma ideia de eternidade cíclica — o que, é claro, complica ainda mais o terreno — de maneira tão cuidadosa que as armadilhas no final das contas se tornam aliadas).

Nascido no século 95, Andrew Harlan vive fora do tempo, numa realidade chamada Eternidade. Essa Eternidade é mantida por homens que dominam a matemática e a tecnologia do deslocamento no tempo com tanta propriedade que suas bases de operações podem transportar massa (no tempo, entenda-se) e efetuar mudanças no curso dos acontecimentos. Almejando o maior bem para o maior grupo de pessoas em todas as épocas da História, esse grupo de homens, chamados Eternos, realizam refinadíssimos cálculos de prováveis e desejáveis realidades e efetuam as alterações necessárias, utilizando-se de cápsulas de deslocamento e computadores ultrassofisticados. (“O pequeno recipiente ficou onde Harlan o deixou. Não desempenhou nenhum papel imediato na história do mundo. Horas mais tarde, um homem estendeu a mão para pegá-lo, mas não o encontrou. Uma busca localizou o recipiente meia hora depois, mas, nesse ínterim, um campo de força apagou-se e um homem perdeu a paciência. Uma decisão, que não teria sido tomada na Realidade anterior, foi tomada agora, na hora da raiva. Uma reunião não ocorreu; um homem que teria morrido viveu um ano a mais, sob circunstâncias diferentes; outro homem, que teria vivido, morreu um pouco mais cedo”, p.76.)

Harlan é um dos técnicos que operam essas tecnologias, tendo passado por um rígido treinamento e abandonado seu tempo natal para instalar-se numa das bases. Espera-se de um técnico que seja frio e desapaixonado, além de adaptado à vida fora do Tempo. (“Preocupar-se com a mística da viagem no Tempo, em vez do simples fato em si, era a marca de um Aprendiz e dos recém-chegados à Eternidade”, p. 7.) Porém, contra o regulamento, Harlan se apaixona e toma uma série de decisões que o permitirão ficar com Noÿs, a mulher amada.

ATENÇÃO: SPOILERS.

O ponto central da trama é a Eternidade, que é onde os Eternos vivem fora do Tempo. De acordo com Asimov, a tecnologia que permite a Eternidade pôde ser desenvolvida no século 24 por um cientista chamado Vikkor Mallansohn, que foi instruído por um homem do futuro — que depois descobrimos ser ele mesmo. Assim, temos um clássico paradoxo temporal sustentando toda a Eternidade: Mallansohn precisa receber a visita de um viajante no tempo para que possa desenvolver os cálculos que permitirão, no futuro, que ele viaje no tempo para ensinar os cálculos a si mesmo. É esse absurdo ciclo que Harlan vislumbra, e mais, descobre ter o poder de destruir (o que é confirmado pelo Computador Sênior Twissell, membro sênior do Conselho Pan-Temporal, quando ele revela que Harlan foi citado inúmeras vezes nos diários de Mallansohn, espécie de manual de manutenção da Eternidade).

No final do livro, descobrimos que Noÿs é uma mulher dos Séculos Ocultos (os séculos entre 70.000 e 150.000, a que os Eternos não podem ter acesso) e que se disfarçou de Tempista e se infiltrou na Eternidade para exterminá-la. Noÿs revela a Harlan, quando eles estão no século 20 devido a alguns sérios contratempos, que os homens dos Séculos Ocultos dominam o Tempo melhor que os Eternos, e que perceberam que a Eternidade e as mudanças de realidade levariam a humanidade à extinção. ( “Investigamos nosso próprio futuro, nosso tempo-acima. Em algum lugar além do 125.000, a humanidade descobriu o segredo da propulsão interestelar. Aprenderam como controlar o Salto através do hiperespaço. Finalmente, o homem podia alcançar as estrelas. O homem tentou sair da Terra. Mas, infelizmente, não estamos sozinhos na Galáxia. Existem outras estrelas com outros planetas. Existem até outras inteligências. Nenhuma, pelo menos nesta Galáxia,é tão antiga quanto a humanidade, mas nos séculos 125.000 o homem permaneceu na Terra e mentes mais jovens nos alcançaram e nos ultrapassaram, desenvolveram a propulsão interestelar e colonizaram a Galáxia. Quando saímos para o espaço, as placas estavam lá. OCUPADO! NÃO ULTRAPASSE! MANTENHA DISTÂNCIA! A humanidade recuou em suas sondagens exploratórias, ficou em casa. Mas agora o homem sabia o que a Terra realmente significava: uma prisão cercada por uma infinidade de liberdade. E a humanidade definhou e desapareceu! Levou milhares de séculos. Houve altos e baixos, mas, no geral, houve uma perda de objetivo, um senso de futilidade, um sentimento de desesperança que não puderam ser superados. No fim, houve um último declínio na taxa de natalidade e, finalmente, a extinção. Sua Eternidade fez isso”, p. 247.)

Uma das melhores coisas que já li na vida, é um daqueles livros que vou ler e reler pra sempre. A história é tão bem construída e rica em detalhes que fiquei me perguntando nos últimos anos (a primeira vez que li este livro foi quando peguei um exemplar na biblioteca do Sesc; desta vez, comprei num rolê especial naquela Livraria Cultura linda do Conjunto Nacional) se o próprio Asimov não é um viajante no tempo, um cara que veio dos séculos ocultos no tempo-acima pra nos presentear com tanta coisa massa.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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