La La Land, Moonlight e a confusão da década

Poucas noites do Oscar são tão memoráveis quanto aquela do longínquo fevereiro de 2017 em que La La Land foi anunciado como vencedor do grande prêmio do ano para, logo em seguida, protagonizar o bafão da década: Warren Beatty e Faye Dunaway haviam feito confusão e lido errado o cartãozinho no envelope; a estatueta, na verdade, destinava-se a Moonlight, o irmão pobre (e gay) de La La Land. 

O resto é história: Jordan Horowitz, produtor de La La Land, entrega um discurso impetuoso, Marc Platt está no meio de seus igualmente emocionados agradecimentos e uma movimentação atípica começa a se fazer visível na forma de um corre-corre no fundo do palco. A movimentação rapidamente começa a se transformar numa balbúrdia pouco americana. Horowitz volta ao microfone escoltado por um desnorteado Beatty e diz à equipe de Moonlight: “vocês ganharam Best Picture. Isso não é uma piada, por favor subam ao palco”. Beatty explica que o cartão do envelope dizia “Emma Stone” e isso o deixou confuso (2017 também é conhecido como o ano em que Emma Stone quase ganhou o Oscar de Melhor Filme). Jimmy Kimmel brinca com Beatty: “Warren, o que você fez?!”. O público, naquelas alturas quase todo semi-adormecido, volta à vida atarantado e se levanta para ovacionar a equipe de Moonlight que, claramente chocada, começa a subir ao palco enquanto o pessoal de La La Land discretamente repassa as estatuetas e sai de cena.  

Agora, três anos depois, o que temos a dizer sobre os filmes que protagonizaram essa lambança? De um lado, o gigante La La Land, bilheteria mundial de US$446 milhões e 14 indicações naquele ano; do outro, US$65 milhões e uma da menores bilheterias a jamais faturar o Oscar de Melhor Filme. O primeiro levou um total de 6 prêmios; o segundo, metade disso. Como explicar a falta de lógica dos critérios que coroaram o melhor filme do ano aquele com metade das estatuetas de seu concorrente? La La Land foi agraciado com os prêmios de Melhor Atriz, Melhor Trilha Sonora, Melhor Canção Original, Melhor Fotografia, Melhor Diretor e Melhor Direção de Arte, mas não foi o melhor filme do ano? Moonlight, por sua vez, levou apenas Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Ator Coadjuvante e, mesmo assim, foi considerado a grande produção daquele período? Difícil explicar. Não é à toa que Faye Dunaway ficou confusa e gritou no microfone o ganhador errado. 

La La Land é um bom filme. Caprichado e bonito, Emma Stone e Ryan Gosling, música e nostalgia, etc e tal. Parece ser um filme exigido pelo seu tempo, assim como Titanic, que, há vinte anos e também indicado a 14 Oscars, foi um filme que deu a seu tempo o que o seu tempo demandava. Avidamente consumido (e nem entraremos aqui em discussões de caráter mais cético, como o corporativismo no cinema americano, porque isso é, de qualquer maneira, denominador comum de, inclusive, todas as indústrias que florescem num modelo capitalista; tampouco encararemos o Oscar como selo infalível de qualidade; as premiações da Academia, contudo, podem certamente ser consideradas um termômetro confiável do consumo da produção cultural), talvez tenha sido a tecnologia ou o Leonardo DiCaprio ou a ideia de uma tragédia anunciada nos tempos das grandes prepotências que tornou o filme uma das mais sólidas referências de sua década, mas fato é que Titanic não passou despercebido a ninguém que tenha vivido os anos 90.

A mão de Pierre Menard reescrevendo o Quixote de tempos em tempos: cada obra de arte que ressoa tão amplamente na cultura de uma sociedade talvez seja, muito borgeanamente, essencialmente a mesma obra. E o que isso diz sobre as 14 indicações de La La Land? Talvez, que queríamos um filme com cara de musical de saudosas décadas, com gosto de jazz (de acordo com Seb, personagem de Ryan Gosling, o jazz é o mais puro tipo de música, mas uma arte agonizante, já que o desinteresse das novas gerações o condenou à extinção), um filme inocente como são inocentes os musicais (explico: um musical exige cumplicidade do espectador mais que qualquer outro gênero; mais fácil seria Ben Affleck salvar o planeta da colisão com um asteroide do que dezenas de pessoas cantarem em perfeito acordo e harmonia em cima do capô dos seus carros num viaduto em Los Angeles espontaneamente; há muita coisa em um musical que depende da candura de julgamento do público, pois, sem isso, chega a ser ridícula ou preocupante a ideia de alguém sapateando e cantando sozinho no meio da rua), um retorno aos primórdios, num ciclo clássico. Talvez La La Land, mais que um bom filme, seja uma boa pedra de toque.

Que, da nação que elegeu Donald Trump como presidente, surja um filme com ares dourados de nostalgia como grande premiado do ano (afinal, levou o maior número de estatuetas) é algo que me soa lógico do ponto de vista do zeitgeist americano médio (e, ainda que toda a comunidade artística tenda a se vender como progressista, há muito conservadorismo na Academia também: algo mais conservador que uma cerimônia engessada de três horas, mulheres de longo e homens de smoking, fatiada em blocos de três minutos com intervalos milionários? Nada de novo na ousadia artística, que hoje vai desde tatuar cada milímetro do corpo a mostrar os peitos no Instagram – como se houvesse algo de particularmente ousado, do ponto de vista artístico ou antropológico, em marcar a pele ou se mostrar nu, já que rituais equivalentes podem ser verificados nas mais variadas sociedades com os mais variados significados. Ou seja: o progressismo se prostitui na esquina no conservadorismo rotineiramente).

Como tudo o que acontece em todo o território que o sol da globalização toca são tremores cujo epicentro está no império, não parece estranho que mais esta onda reacionária seja liderada pelo coração do império, a cultura norte-americana. As 14 indicações ao Oscar de La La Land podem ser um fragmento desse fenômeno, mas é óbvio que os méritos do filme são indiscutíveis e que, entre os muitos Quixotes, é bom achar uma história de amor que converse com tanta gente: isso significa, no final das contas, que Doroteia continua sendo a princesa predestinada de Quixote e Jack continua morrendo por Rose. O amor continua sendo a maior revolução possível, o grande sonho da humanidade – ou, é claro, a grande ilusão.

Sintomático é também o fato de os votantes terem decidido por Moonlight, apesar de todas as pistas indicarem que era mesmo o ano do filme de Damien Chazelle. Também um bom filme, Moonlight deu a Mahershala Ali o seu primeiro Oscar de Melhor Ator Coadjuvante (o segundo viria dois anos depois, com Green Book) e colocou no centro da discussão um assunto que ainda é o maior de todos os tabus, até nas sociedades mais liberais: a sexualidade humana. Mais especificamente, a homossexualidade de um homem negro, duplo tabu na sociedade ocidental em geral e na americana em particular. 

Foi importante que Moonlight vencesse porque a história ali precisava muito ser contada e, mais que isso, ser ouvida. Em épocas de obscuro pensamento retrógrado (cujos praticantes preferem chamar de “pensamento conservador” – o que, de qualquer maneira, sempre me faz pensar: sendo a humanidade esse animal perigoso que só sabe lidar com o diferente na base da violência e da intolerância, esse pessoal quer “conservar” o quê?), é importantíssimo que um filme sobre um negro gay da periferia de Miami seja premiado. É imprescindível que a luta pela conscientização rebata com firmeza o atraso das hordas de ignorantes de plantão que insistem em opinar com truculência sobre as liberdades individuais alheias. Os outros bons filmes com protagonistas negros que foram indicados naquele ano (além de Moonlight, tivemos Hidden figures e Fences) formam um belo painel do que é a resistência e do que ela tem sido desde sempre. Por isso, Moonlight levar o Oscar de Melhor Filme de 2017 (no que seria imitado por outro underdog três anos depois, o fenômeno coreano Parasita – sem o tumulto cerimonial e de maneira um pouco mais, digamos, anunciada; comentamos o filme de Bong Joon Ho aqui) foi a coisa mais importante que a Academia podia ter feito em termos de resistência.

Simbólico, até, o fato de que Jordan Horowitz tenha recebido o prêmio e, depois da histórica confusão, o tenha passado, em mãos, aos produtores de Moonlight. Algo assim: sim, estamos fazendo boa arte aqui com este elenco branco e bem-nutrido de dentes clareados, cinema retrô com gosto de décadas passadas, mas a sua arte, essa arte de honestidade corajosa que vem das vísceras do sofrimento humano, deverá ser premiada inclusive pelo timing (sim, Trump, Moonlight é o melhor filme que seu país produziu no ano em que você venceu as eleições surfando em seus discursos cheios de ódio). Temos que falar, urgentemente, sobre as franjas oprimidas, relegadas, e temos que dar voz aos que mais lidam com a exclusão o tempo todo, porque isso também é função da arte. Parasita, em 2020, gritou isso para o mundo. Green Book deu sua contribuição em 2019. Claramente, a Academia segue tentando se posicionar contra o conservadorismo obscurantista – ainda que de maneira um pouco confusa e estabanada.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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