O papel de parede amarelo

John ri de mim, é claro, mas isso é de se esperar em um casamento.
John é prático ao extremo. Não tem paciência para questões de fé, nutre um imenso horror à superstição e zomba abertamente de qualquer conversa sobre coisas que não podem ser vistas nem sentidas nem traduzidas em números.
John é médico, e talvez – (eu não o diria a vivalma, é claro, mas segredar apenas ao papel já é um grande alívio para a minha mente) -, talvez seja por isso que eu não me recupero mais rápido.
O fato é que ele não acredita que estou doente!
E o que se pode fazer?
Se um médico de renome, que vem a ser seu próprio marido, assegura aos amigos e parente que não se passa nada de grave, que se trata apenas de uma depressão passageira – uma ligeira propensão à histeria -, o que se pode fazer?
(…)
Em particular, discordo da opinião deles, mas o que se pode fazer?

É com essa apresentação da dinâmica familiar que começa o conto de Charlotte Perkins Gilman. O tom confessional desse conto narrado em primeira pessoa reflete o profundo sofrimento de uma mulher mantida em uma casa grande e afastada de tudo e de todos pelo seu marido marido extremamente machista e controlador “atencioso e amável”, a fim de se curar de sua doença dos nervos. A narrativa de Gilman é, portanto, uma denúncia da opressão da mulher pela sociedade e pela ciência dos homens (publicada no século XIX!).

Lido por muito tempo como mais um conto de terror psicológico, só foi entendido como uma contundente crítica social na década de 1970, quando estudiosas feministas recuperaram e redescobriram a obra. A personagem de Gilman (cujo nome jamais é mencionado) está confinada em um quarto com um papel de parede amarelo, que pode ser entendido como uma metáfora para as imposições da sociedade sobre as mulheres (“Justo quando pensamos tê-lo decifrado, ao avaçarmos por sua sequência, ele dá um salto-mortal para trás e nos faz voltar ao princípio. Dá-nos um tapa na cara e lança-nos ao chão e nos pisoteia.”). Ao passar das semanas de confinamento, a personagem se vê intensamente envolvida pelo padrão do papel e o desejo de decifrá-lo a acompanha de modo persistente em todas as horas de seu dia. A imagem de uma mulher rastejando, que a personagem vê no papel, é perturbadora e, em sua última noite na casa, a personagem tem um objetivo: libertar a mulher rastejante do papel.

A personagem de Gilman é o arquétipo da mulher subjugada por uma sociedade machista e opressora que, ao sucumbir a isso é tratada como louca, doente, “propensa a doenças dos nervos”. Enquanto John, seu marido – e outros homens a sua volta, como seu irmão, também médico, por exemplo – podem ser uma alegoria para o macho opressor e controlador que expressa toda essa opressão velada por meio do cuidado, já que o homem é quem sabe o que é bom para a saúde mental de sua esposa (e inclusive impede que ela escreva, apontando a atividade da escrita como uma causa da doença).

A restrição da escrita – como mais uma tentativa de mordaça para a mulher – dá à narrativa ainda mais veemência e visceralidade, além de conversar com problemas que ainda não deixamos de enfrentar, mais de um século depois da publicação do conto de Gilman. Afinal, mulheres que leem, escrevem e que, de maneira geral, questionam relações preestabelecidas de poder, continuam sendo vistas como anormais por muitas parcelas da sociedade que preferem usar o “bela, recatada e do lar” como régua de feminilidade e balança do valor da mulher – esse ser que é ou dócil ou histérico.

Em uma pequena edição cuidadosamente preparada pela editora José Olympio, publicada no Brasil em 2016, O papel de parede amarelo é uma leitura imprescindível: literatura de denúncia, incômoda e que nos leva a intensa reflexão.

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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