Conversando com Mrs. Dalloway

Lançado no Brasil em 2013 pela Casa da Palavra, do grupo LeYa, este livro da americana Celia Blue Johnson foi uma surpresa tão boa que, assim que terminei de ler, voltei à loja e comprei outra cópia para dar para um amigo. Em capítulos curtos e deliciosos, a autora conta a história por trás das histórias, os momentos de inspiração e os processos criativos dos escritores que presentearam a humanidade com grandes obras de ficção. Ela passa por Hemingway e Fitzgerald, García Márquez e Júlio Verne, Dostoiévski e Melville. São cinquenta obras, cinquenta processos. Celia Blue Johnson começou a perseguir este tema quando terminou de ler Mrs. Dalloway “pela terceira ou quarta vez” e decidiu “investigar o que aconteceu antes da criação da primeira página”.

O mais interessante é perceber certas recorrências: muitos autores parecem receber seus personagens de maneira quase sobrenatural, vindos de outra dimensão. Como se estivéssemos imersos em um universo de possibilidades e a literatura se apresentasse como um fio de mediunidade, um acesso a esse reservatório de almas e eventos inventados que só podem ser alcançados através de talento e trabalho.

Tolstói recebeu Anna Karenina aos poucos, começando pelo cotovelo, no intervalo amortecido entre a vigília e o sono. Julio Verne pariu Phileas Fogg a partir de um anúncio de jornal que incendiou sua imaginação e Robert Louis Stevenson, após terminar a pintura de uma aquarela, visualizou, na ilha que tinha produzido, uma série de personagens entre as folhagens das árvores. Tolkien era professor em Oxford e, numa tarde tediosa, se pôs a corrigir provas quando uma frase lhe assomou à mente: “Num buraco no chão vivia um hobbit”. García Márquez dirigia em direção ao México quando ouviu em sua cabeça a primeira frase de Cem anos de solidão. Deu meia-volta, trancou-se no quarto e durante um ano frenético produziu o maior romance latino-americano de todos os tempos. O livro de Celia Blue Johnson não chega a tratar de J. K. Rowling, mas lembro de ler em algum lugar o relato do momento da criação de Harry Potter, que chegou a ela inteiro, de súbito, no meio de uma viagem de trem. Nesse mesmo tom “revelatório”, Stephen King, na introdução a uma das peças de Tudo é eventual, se refere a seus contos como “artefatos: não coisas feitas, criadas por nós, mas objetos preexistentes que desencavamos”.

Joseph Heller, autor de Catch-22, afirmou: “As ideias vêm a mim; eu não as crio por um ato de vontade”. William Burroughs menciona um “invasor”, um “Espírito Horrendo”, com o qual entrou em contato após a morte da esposa (anedótica, inclusive: ao fazerem uma brincadeira em uma festa, ela pôs um copo de uísque na cabeça para que o marido pudesse atirar nele e estilhaçá-lo; ele acabou atingindo a cabeça dela, que morreu antes de chegar ao hospital). Jack London dizia que “não se pode ficar esperando pela inspiração. É necessário sair atrás dela com um porrete”, o que pode dar a entender que a inspiração é o desfecho de um processo voluntário. Porém, ainda que o processo seja voluntário, o seu resultado não é obtido inevitavelmente, matematicamente. Até, por isso, o porrete.

Não é à toa que os gregos invocavam as musas para enveredar pela tradição poética: a própria palavra “inspiração”, tão prosaica, remete ao ato de trazer para dentro algo que está fora, um sopro de vida, oxigênio, combustível. Me parece bonita essa ideia, até quando a inspiração vem de pessoas reais: Tom Sawyer é um modelo montado a partir de três meninos que Mark Twain conheceu em sua infância, e a inspiração de Twain é uma espécie de eletricidade que percorre o pequeno Tom e o traz à vida, bem à maneira de um experimento do Dr. Frankenstein.

Fato é que, depois de trazidos à vida, bons personagens ganham o dom da imortalidade. Conan Doyle teve que ressuscitar Sherlock Holmes por conta do clamor público, por exemplo, mas não é disso que falo. Nem falo do belo episódio que García Márquez relatou algumas vezes: quando chegou a hora de o Coronel Aureliano Buendía morrer de velho, García Márquez, que já havia prorrogado demais essa hora, subiu ao quarto em que a esposa dormia e chorou por duas horas.

Falo dessa zona sobrenatural que a inspiração parece alcançar, sendo berçário de figuras que são maiores que a vida: Holmes é maior que Conan Doyle, Quixote é maior que Cervantes, Alice é maior que Carroll. Esses personagens jamais morrerão, continuarão vivos indefinidamente. Até quando as gerações futuras se esquecerem de seus criadores e recontarem essas estórias através de suas novas tecnologias, esses personagens estarão vivos. Tudo graças a esse segundo inesperado de mediunidade, a inspiração.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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