García Márquez e outros grandes escritores

García Márquez costuma dizer que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro e que o dele é o livro da solidão. Isso é sempre tão citado nos perfis que se fazem dele que eu já tinha há muito tempo me acomodado à beleza simples da frase sem contudo dar a devida atenção ao seu significado. O que um dos maiores gênios da literatura quis dizer com “todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro”? Fui investigar os meus preferidos, começando pelo próprio García Márquez.

Apesar de toda a obra do colombiano ser povoada por seres dos mais variados, fiquei surpresa ao constatar que, de fato, a personagem principal do seu imaginário fabuloso é a solidão. A começar por Cem anos de solidão, é claro, em que, numa narrativa assombrosa de frases impecáveis, García Márquez conta a história de Macondo, um povoado solitário. A solidão está presente em Relato de um náufrago (e há algo mais solitário que um naufrágio?), está presente no cotidiano asfixiante do coronel a que ninguém escreve, na trágica vida de Erêndira em eterna peregrinação com sua avó desalmada, na morte de Santiago Nasar, que andou por toda a cidade sendo o único a ignorar que morreria, na agonia de meio século de Florentino Ariza e na noite dos oitenta anos de um senhor que quis se presentear com uma puta virgem.

Então pensei no Borges, e novamente dei razão ao García Márquez. Toda a obra do Borges é sobre o espanto do intelecto frente aos enigmas do universo – e eu também poderia ter dito ‘espantos estéticos’, mas essa expressão comporta muitos significados, inclusive os enganosos. Não há nada mais espantoso que um ponto na escada do porão de uma tal Beatriz Viterbo contendo todo o universo; nada mais espantoso que um estrangeiro vagando por ruínas de castelos de deuses antigos; nada mais espantoso que tantos labirintos perfeitos construídos por um homem que se tornou aos poucos cego e cuja mais nítida memória ao fim da vida era a imagem de um tigre, daqueles magníficos ferozes soberbos terrivelmente belos. Enfim, nada mais espantoso que Borges, cego, olhando o universo, vendo tudo com clareza e transformando seus questionamentos no que hoje conhecemos como sua literatura, a mais fantástica entre as fantásticas.

Pensei no Erico Verissimo, que falou tanto sobre a vida cotidiana através das torrentes dos anos, e no Luis Fernando, que é o maior cronista que tivemos depois do Machado e que sabe tudo sobre o humor subjacente nas nossas agrurinhas diárias – o Luis Fernando é tão bom quanto o Mark Twain. Pensei no Umberto Eco, reconstruindo épocas frase a frase, no Vargas Llosa, acreditando desesperadamente em certa identidade que talvez ultrapasse as noções de nacionalidade – mas quem sabe? -, no Hemingway e sua genial melancolia estilizada com finíssimos traços, na Clarice, que é capaz de provar com uma ou duas linhas o quanto o mundo de dentro é tão ilimitado quanto nosso universo em expansão, no Caio F., a alma delicada fazendo ponto na Augusta para vomitar literatura visceral, no Guimarães Rosa, que inventou para si uma língua capaz de dizer mais que aquela língua ultramarina surgida de eternas guerras peninsulares de mouros e depois transplantada para onde sufocaria a língua dos índios.

Pensei naqueles autores de escritos ainda mais homogêneos, no Conan Doyle e na Agatha Christie, lógico, no Rubem Fonseca e no seu macho-alfa invariavelmente metido num crime, no Marcelo Rubens Paiva e seus garanhões displicentes, na J. K. Rowling, no C. S. Lewis, no J. R. R. Tolkien, e, por fim, pensei no J. J. Benítez e na dimensão literal que ele deu à frase do García Márquez que serviu de mote a estas notas: Cavalo de Tróia já está no seu volume 8 ou 9, alguma coisa assim. E eu acho que o primeiro já tinha espremido o suco todo (o primeiro volume é realmente uma obra-prima que dispensaria os que vieram depois), mas todo escritor tem seu livro eterno a escrever e o Benítez levou isso extremamente a sério.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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