… A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.
(28 de maio de 1959)
Mulher, negra, catadora de papel, favelada, leitora, escritora.
É com uma rebeldia contra todas as probabilidades (afinal, pobre que lê é realmente um rebelde, no melhor sentido da palavra) que Carolina Maria de Jesus contou sua história ao mundo – sua principal obra foi traduzida para mais de 10 línguas. Quarto de despejo: diário de uma favelada ficou famoso na década de 1960, quando os escritos de Carolina foram descobertos por um jornalista e reunidos em um livro.
O retrato autêntico do cotidiano da uma mulher na extinta favela do Canindé, na cidade de São Paulo, é perturbador: a escrita visceral de Carolina sobre a condição da mulher responsável por três crianças é extremamente incômoda (“… Ganhei 15 cruzeiros e passei no sapateiro para ver se os sapatos da Vera estavam prontos, porque ela reclama quando está descalça. Estava pronto e ela calçou o sapato e começou a sorrir. Fiquei olhando minha filha sorrir, porque já não sei sorrir.”), a descrição sobre a cor da fome é como um soco no estômago (“Que efeito surpreendente faz a comida em nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.”), e o discernimento com que a autora trata de assuntos como o poder estatal e o desinteresse dos políticos (“Os Juizes não tem a capacidade para formar o carater das crianças. O que é que lhes falta? Interesse pelos infelizes ou verba do Estado?” “Eles [os políticos] gastam nas eleições e depois aumentam qualquer coisa… Um pouquinho de cada um, eles vão recuperando o que gastam. Quem paga as despezas das eleições é o povo!”) é particularmente marcante.
A rebeldia de Carolina também se reflete em seu estilo. A inconstância na aplicação de algumas convenções da escrita padrão é um traço que já levantou (e tem levantado) questões sobre sua produção – especialmente quando a Unicamp colocou na sua lista de livros obrigatórios o diário de Carolina Maria de Jesus. Mais uma vez, contrariando as probabilidades, ao lado de outros grandes – como Machado de Assis e Guimarães Rosa – Carolina figura como uma das vozes renovadoras da literatura brasileira, pois traduz com realismo a forma de o povo enxergar e expressar o mundo.
Quarto de despejo já parte de uma metáfora desconcertante. A cidade é retratada como uma casa, em que o centro é a sala de visita “com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos”, enquanto a favela é o quarto de despejo – lugar de “objetos fora de uso”. Então, no relato de Carolina temos uma denúncia da realidade: é o retrato da favela pela favelada.
Ainda que não perfeitamente ajustados (já que Carolina antecipa e anseia pela emancipação e uma possível saída da favela é um ponto a que ela retorna repetidamente, inclusive fazendo questão de grifar os desajustes), autora e ambiente têm uma dinâmica que é descrita em detalhes de rotina, sensoriais, anedóticos. Uma manifestação desse desajuste é relatada por Carolina em entrevista posterior: após sua partida (com a publicação de seu livro, Carolina de fato conseguiu sair da favela, para um pequeno sítio na periferia, com o pouco de dinheiro que lhe pagaram pelos direitos autorais), o relacionamento tanto com os moradores da favela, quanto com “o mundo aqui fora” refletia esse desajuste: dinheiro, exigências, desonestidade e ambição faziam com que Carolina não pertencesse nem ao quarto de despejo, nem à sala de visita.
Leitura obrigatória, não só para refletirmos sobre realidades que normalmente não fariam parte do nosso universo imediato de preocupações (nós = classes médias que confortavelmente discorrem sobre literatura na internet), mas também para homenagear essa mulher excepcional que, com rebeldia contra todas as probabilidades, não sabia dormir sem ler, e acreditava que “o livro é a melhor invenção do homem”.