Todas as vezes que li Atlas, um livro de viagens muito borgeano em que cada pequena impressão sobre um país ou uma cidade ultrapassa, em sua vastidão filosófica, a extensão dos breves escritos e a mera geografia dos lugares, me emocionei tanto que cheguei às páginas finais aos prantos. O último dos textos, de autoria de María Kodama, é uma despedida delicada e uma declaração de amor que certamente deixariam Borges encabulado e embevecido.
Borges e María Kodama formaram um par pouco óbvio. Apesar de terem se casado oficialmente apenas dois meses antes da morte de Borges, em 1986, os dois conviveram intimamente por mais de uma década, período em que Kodama viajou o mundo com o já consagrado escritor, primeiro como secretária e depois como inseparável companheira (a quem Borges inclusive dedicou alguns de seus raros escritos abertamente românticos).
Kodama faleceu no último mês de março, aos 86 anos – a mesma idade que tinha Borges quando partiu. Figura controversa nos meios literários argentinos, pintada como a viúva mesquinha pela imprensa (não totalmente sem razão: até Norman Thomas Di Giovanni, tradutor de Borges para o inglês e amigo do autor por décadas, ela processou por não concordar com a divisão de royalties estabelecida consensualmente pelos dois, estipulada em 50/50), Kodama deixou uma série de litígios em curso e (que bagunça se dará na Argentina!) nenhum testamento. O que acontecerá com o espólio de Borges, do qual Kodama era herdeira universal, ninguém sabe.
Pessoalmente, acredito que o impulso de julgar Kodama por suas escolhas “conservadoras” venha de uma leitura equivocada de Borges. Explico minha opinião em três pontos.
O primeiro: uma batalha jurídica contra a Gallimard, por exemplo, rendeu a Kodama, nos anos 2000, a fama de alguém que impunha “obstáculos à difusão da obra de Borges”. Ora, como pode alguém dizer que a obra de Borges não está difundida se Borges está em quase todos os lugares? Raros são os escritores que não façam referência a Borges em pelo menos um de seus livros, e eu mesma já encontrei menções ao mestre argentino em trabalhos tão díspares quanto um tratado de física quântica, um romance de Luis Fernando Verissimo em que Borges é um detetive, uma tese de doutorado sobre o papel dos sonhos na cultura Yanomami, uma análise da obra de Drummond e a recente biografia de Fernando Pessoa por Richard Zenith, para citar só os livros que vêm à mente agora. Talvez María Kodama tenha entendido algo que escapou aos editores franceses, ou seja, que Borges se diluiu na cultura de nosso tempo de tal maneira que a publicação de seus livros tem regras específicas a serem seguidas, e elas certamente não são as do mercado.
O segundo ponto: Borges era mesmo um reacinha e María Kodama o conheceu como ninguém. Nascido em 1899, o autor celebrava seus antepassados militares como símbolos da coragem que ele, tímido homem de letras, jamais teria, e são famosos seus textos sobre duelos de honra; uma de suas obsessões, ao lado dos espelhos e dos tigres, eram os punhais. Alejandro Chacoff, no texto sobre Kodama publicado na seção Despedida da revista piauí nº 200, conta a seguinte anedota: após a morte de Borges, Kodama precisava encontrar um novo editor e uma das opções era a catalã Carmen Balcells, agente de gigantes latino-americanos como García Márquez e Vargas Llosa. A viúva se decidiu por outro editor, já que, de acordo com ela, Balcells era comunista e Borges jamais aceitaria ter sua obra administrada por uma comunista. Aqui, vale um adendo: Borges foi inimigo pessoal de Juan Domingo Perón. Na época que o ditador argentino subiu ao poder, Borges já era um escritor famoso cuja resistência incomodou o regime de tal maneira que uma das primeiras medidas de Perón, seguramente afrontosa, foi nomear Borges inspetor de galinhas no mercado municipal – ofício do qual Borges, é óbvio, declinou. Com o golpe militar que derrubou Perón, veio a nomeação de Borges como diretor da Biblioteca Nacional. Então é simplista dizer de Borges que era simplesmente anticomunista e anacrônico dizer que era um neoliberal. No final da vida, na verdade, Borges se declarava anarquista – porém definitivamente antiperonista antes de mais nada.
O terceiro ponto, enfim, talvez seja o mais íntimo e o mais importante: Kodama é parte da obra de Borges e de seu legado. Atlas, originalmente publicado em 1984, é um livro que atesta isso de maneira inequívoca. Sempre ao lado de seu marido, a vida dela foi uma extensão da vida dele, até o fim. Uma das coisas que mais me marcaram ao ler a robusta biografia de Borges por Edwin Williamson foi perceber o quanto Borges sempre esperou por uma mulher que lhe permitisse viver um grande amor. Esse lado sensível de um escritor tão cerebral pode passar batido até aos versados em sua obra, mas fato é que Borges se apaixonou e se decepcionou inúmeras vezes, com direito até a um casamento desastroso que durou um ano, e encontrou, já na velhice, a “Beatriz” que buscou a vida inteira. Sem sombra de dúvidas, o encontro dos dois foi um dos momentos capitais na vida de Borges. Williamson faz um belo trabalho reconstituindo a história desse romance com base nos textos que Borges vai publicando através dos anos.
Entre a responsabilidade e a neurose, nos meandros fantásticos e cômicos das disputas judiciais ensejadas pelo ímpeto litigioso de Kodama através de seu lado mais fanático e infatigável (todas esses substantivos e adjetivos foram usados no artigo de Chacoff, justo e equilibrado no fim das contas), é inegável que ela se deixou levar pelo mito de Borges e se inscreveu na história dele, inclusive de maneira flagrantemente intrusiva, como poucos cônjuges tiveram a oportunidade de fazer. Borges não tem paralelo na literatura contemporânea. Seus pares não são Cortázar e Arlt, mas sim Dante, Shakespeare e Cervantes. Como tratar o espólio de um gigante literário eterno na era dos direitos autorais? Não há manuais para tal. Além disso, os abutres certamente espreitam, como bem sabia Kodama e como saberemos nós nos próximos anos.
Obs.: Nas vezes que estive em Buenos Aires, tentei visitar a Fundação Jorge Luis Borges, mas sempre dei com a cara na porta. Nunca encontrei a casa na rua Anchorena aberta, mesmo quando fui nos exatos horários de funcionamento discriminados no site oficial e no Google. Certamente há algo de kafkiano nisso, muito mais do que borgeano. Porém, nessas ocasiões, preferi não me sentir barrada, e sim convidada a retornar. De novo. E de novo. Numa piada prática que atribuo à aparentemente não tão neurótica María Kodama.