Daniel Galera foi por anos um dos meus contemporâneos brasileiros preferidos, juntamente com Milton Hatoum e Cristovão Tezza. Continuo gostando muito da escrita dele, mas explico o verbo no passado que usei ali na primeira linha: quando li Mãos de cavalo pela primeira vez, gostei imediatamente de Galera; a narrativa ágil do romance de 2006, tecida em prosa com um fino sabor de oralidade a partir de retalhos da vida do protagonista, me agradou tanto que já reli o livro algumas vezes desde então. Li quase tudo que Galera escreveu e gostei especialmente de Barba ensopada de sangue.
Então cortamos para dois episódios independentes que terei que relatar a fim de justificar o tal do verbo.
O primeiro episódio: no meu aniversário de trinta anos, ganhei de presente o Meia-noite e vinte, publicado em 2016. O amigo que me deu o livro disse que tinha comprado porque respeitava meu gosto por Galera, mas que achava o cara um chato. Pelo que sei, alguma coisa aconteceu em alguma Flip (confesso que não sei exatamente o quê, nem sei se é verdade) e o Galera passou uma vibe arrogante ou coisa parecida. Enfim, deixei isso pra lá e li o livro, do qual inclusive gostei bastante. Um tempo depois, conversando com uma amiga, chegamos no assunto do Barba ensopada e ela, para minha supresa, disse que tinha odiado o livro. Por um momento, julguei o julgamento dela, já que eu estava convicta de que Galera era um dos maiores escritores de ficção em atividade no Brasil. Ela me deu uma explicação que demorei para aceitar: ela disse simplesmente que Galera era um escritor que fazia questão de escrever como macho e que ela não gostava disso. Na hora eu discordei, mas devo dizer que uma pulga se instalou atrás da minha orelha – até porque essa amiga sempre pensou sobre essas questões de gênero de maneira muito mais atenta do que eu.
Pode ser que eu seja sugestionável, mas depois dessas conversas comecei a reparar em certas coisas. Li Até o dia em que o cão morreu e quem quase morreu de tédio fui eu. O livro de estreia de Galera me soou exatamente como os meus amigos diziam que soava pra eles, ou seja, algo como a fantasia arrogante de um pretenso macho alfa. Por isso, digo que Galera era um dos meus preferidos. Continuo gostando muito de sua prosa, mas acho que gostava muito mais quando eu era machista.
Esse lançamento de 2021, O deus das avencas, uma trinca de novelas distópicas, é de fato um livro muito bem escrito. Galera escreve muito bem, ninguém vai conseguir me convencer do contrário (apesar de que na adolescência eu adorava o Rubem Fonseca até que fui convencida de que ele era dispensável, quando descobri que ele apoiou o golpe militar e comecei a notar que seus protagonistas machos sempre tinham mulheres muito melhores que eles permanentemente de joelhos; são coisas diferentes, eu sei, mas a discussão é parecida).
Com relação ao tal machismo do Galera, devo opinar que O deus das avencas mostra uma evolução gigantesca se pegamos como referência Até o dia em que o cão morreu. Com exceção da primeira novela, que dá nome à coletânea e que me pareceu a história de um parto de fato narrada por um homem que pesquisou sobre o processo, não senti que nas outras duas, Tóquio e Begônias, o gênero do autor tenha sido sequer perceptível. Claro que o Galera faz questão de aqui e ali mostrar seus poderes narrativos: em certo momento da história, uma personagem secundária, também grávida, é acompanhada por um “cão Rhodesian Ridgeback”. O porquê de ela ser acompanhada por uma raça tão específica, que poucas pessoas conhecerão a ponto de conseguir usar esse detalhe para composição mental da cena, é algo que Galera não responde em nenhum momento. A tal personagem sequer aparece de novo. Gostei particularmente de Tóquio, uma história com ares de Black Mirror muito bem executada. A última novela, Begônias, me lembrou algo como os God’s Gardeners da Margaret Atwood, no universo de MaddAddam, mas muito mais fragmentado.
Me diverti com a leitura (que inclusive foi bem rápida, concluída em duas sentadas) e certamente me lembrarei de alguns daqueles cenários por muito tempo ainda.
Obs.: A revista piauí #188, de maio de 2022, traz uma análise muito interessante de autoria de Vinicius Portella. O deus das avencas e A extinção das abelhas, de Natalia Borges Polesso, são colocados lado a lado em meio ao cenário de apocalipse ambiental e total desesperança neste país que nos oferece seu maior palhaço como presidente da república em pleno século XXI. Vale a pena a leitura.