A primeira vez que li Szymborska foi por indicação de Laís, uma menina que trabalhava numa pequena livraria que eu frequentava, nos bons tempos pré-pandemia, no bairro do Cambuí, em Campinas. Eu estava zanzando entre prateleiras uma tarde depois da aula, com aquela vontade de algo diferente que vira e mexe acomete o leitor habitual, e Laís começou a conversar comigo sobre minhas preferências, na tentativa de arriscar uma sugestão. Ao fim de alguns minutos de conversa, ela disse que, com toda a certeza, eu adoraria Wislawa Szymborska, a poeta polonesa ganhadora do Nobel em 1996, e que eu deveria lê-la com urgência. Acabei levando o volume Poemas, seleta publicada no Brasil em 2011 pela Companhia das Letras, com tradução de Regina Przybyczien, 44 poemas e uma capa em preto e branco que com o tempo aprendi a amar: em meio à fumaça de um cigarro de inveterado hábito, uma senhora posa para a foto em seu apartamento, com uma prateleira de livros semivazia ao fundo e uma xícara de porcelana em primeiro plano.
Quando cheguei em casa, li alguns poemas e o que era espanto foi virando algo parecido com uma febre, conforme eu ia virando as páginas. Chorei. Ri. Repensei a vida. Senti coisas mudarem dentro de mim. Ri mais. Li o livro inteiro duas vezes naquela mesma noite e, no dia seguinte, voltei à livraria para buscar Um amor feliz, a outra coletânea que na época também era publicada no Brasil (hoje, há outras obras disponíveis por aqui, tanto pela Companhia quanto pela Âyiné). A Laís disse, satisfeita – e premonitória –, que já esperava essa reação.
Nunca mais parei de ler Szymborska. Quando conheci minha esposa, Szymborska foi um dos nossos primeiros assuntos em comum e até hoje falamos nela como nosso cupido: chegamos ao extremo de ter matching tattoos com a capa de um livro da poeta e por pouco a nossa lua-de-mel não foi na Polônia. Enfim: é uma loucura.
Mês passado, a Âyiné trouxe para o público brasileiro Quinquilharias e recordações, a biografia escrita por Anna Bikont e Joanna Szczesna e publicada originalmente em 2012 (ano da morte de Szymborska). Encomendei um exemplar na pré-venda e é desnecessário dizer que ataquei o livro assim que ele chegou pelo correio.
Que livro lindo, a começar pela capa e pelo caderno de fotos incluído no final do volume. A partir de uma cronologia linear que começa do resgate das origens da grande poeta, seus avós, seus pais e seu nascimento numa casa que ficava na divisa entre Kórnik e Bnin (as duas cidadezinhas que até hoje reclamam o direito de ser o local em que Szymborska veio ao mundo), seguimos sua trajetória em tudo excepcional através de uma guerra (Syzmborska nasceu em 2 de julho de 1923) em que a Polônia foi o centro de disputas violentíssimas, a juventude entre escritores e a ideologia comunista (que mais tarde na vida renegará, diante dos escombros morais dos regimes ditatoriais), até o ápice de sua carreira como artista – o reconhecimento mundial e o Nobel em 1996 –, e sua morte tranquila, durante o sono, em seu apartamento em Cracóvia, aos 88 anos, em fevereiro de 2012.
Difícil pintar um quadro do que foi essa mulher sem recorrer ao uso maciço das 557 páginas que compõem essa biografia. Entre fatos e fragmentos, depoimentos e poemas, lições sobre a vida e sobre poesia, as autoras montaram um belo painel, quase à revelia da biografada (que, como é sabido, evitou um livro desses enquanto pôde), capaz de dar conta dos três planos de uma boa biografia: vida pessoal, contexto histórico e como essas duas coisas se entrelaçam.
O que dificulta um pouco o fluir da leitura é a profusão de referências a personalidades polonesas, já que tanto a língua quanto a cultura popular desse país me são tão estranhas que, às vezes, cheguei a demorar minutos inteiros para decifrar uma sequência de diacríticos e consoantes. A certa altura da leitura, passei a simplesmente pular as notas de rodapé que explicavam quem eram aqueles polacos – mas, claro, com a firme determinação de voltar a eles numa segunda leitura. A melhor coisa do relato, por sua vez, é o senso de humor de Szymborska, que brilha através das páginas nos limeriques que habitualmente praticava, brincadeirinhas literárias (ela inventou pequenos gêneros tais quais “moscovitas, altruitinhas, melhoríadas, dasvodcas e escutações”) e práticas (além dos famosos cartões postais de colagens que enviava aos amigos todo ano, dos trotes telefônicos e sorteios de quinquilharias que fazia com frequência, Szymborska adorava uma pegadinha: certa vez colocou uma ovelha de gesso em tamanho real no jardim de um casal de amigos). Nas palavras de Asar Eppel, tradutor de Szymborska para o russo, ela era “uma poeta grandiosa e uma pessoa completamente normal.”
Anders Bodegard, tradutor de Szymborska para o sueco, afirmou, a propósito de sua poesia: “Ela é uma ilusionista: em todos os seus poemas aparece um coelho imprevisto tirado da cartola. É com as ilusões que Szymborska os pega pela cauda, levanta, envolve nas mãos, sacode – com delicadeza, muita delicadeza – e depois os coloca de volta no lugar, mudados para sempre.”
Enfim, para terminar esta pequena apreciação, recorro ao depoimento de Woody Allen sobre Szymborska, que me parece exato e que foi feito em uma entrevista na ocasião em que ficou sabendo que a poeta gostava de seus filmes: “Leio sem parar tudo o que ela escreveu. Eu sou conhecido como um homem espirituoso, mas o senso de humor dela supera o meu. Ela tem uma enorme influência no nível da minha alegria de viver. (…) Ela corresponde perfeitamente à minha definição de artista profundo e penetrante, mas lembrando também que sua tarefa é o entretenimento do leitor. Ela faz exatamente isso. Eu me sinto honrado que ela saiba da minha existência.”