Mudar: Método

Quando li o episódio III da primeira parte de Ulysses, em que Stephen Dedalus deposita uma bolinha de meleca numa pedra enquanto vê os navios ao longe, ou mesmo o episódio IV, em que assistimos ao senhor Bloom ler o jornal enquanto faz cocô, constatei estar diante de um autor que não pouparia a intimidade de seus personagens. Nada estaria além dos limites — e aquilo era eletrizante.

Uma das cenas que Édouard Louis escolhe para abrir as cortinas de seu potente Mudar: método me causou esse mesmo impacto. Em primeira pessoa, Louis nos conta em detalhes (que talvez preferiríamos não saber) um dos pontos mais baixos que viveu em seus dias de garoto de programa em Paris. Esse momento, para o autor francês, foi também um dos motivos pelos quais decidiu contar tudo, tudo o que o havia carregado àquele ponto.

Tudo está escancarado neste livro que é uma verdadeira ferida aberta: a vergonha da infância pobre de menino afeminado, constantemente insultado pelos colegas por não reproduzir a performance de masculinidade que era esperada dele, a humilhação que o impeliu à fuga, à busca por uma nova vida, a transformação calculada, física e intelectual, visando uma ascensão social que, no fim das contas, jamais se realiza plenamente.

Quase como se Pierre Bourdieu, Annie Ernaux, Karl Ove Knausgard e um coach eficaz tivessem um bebê gay capaz de produzir literatura boa, cortante, contemporânea no sentido mais urgente da palavra, aquele em que o artista faz de si mesmo produto e obra, monetizando, enfim, a atenção captada, a exposição final.

Obs. 1: Só li Louis agora porque ele vai participar da Flip deste ano. Acabei seduzida pelas pilhas de livros dele que montaram na Livraria da Travessa. Estou ansiosa para ver a mesa dele, que deve acontecer amanhã, 12/10, sábado às 19h30.

Obs. 2: Bonito texto de Thallys Braga na edição 217 da revista piauí, comemorativa de 18 anos, sobre sua identificação imediata com a obra de Louis. Muito sensível e sincero o texto do repórter carioca (que, vale lembrar, escreveu a viral reportagem sobre a a oportunista Vilma Petrillo e que atualmente prepara uma biografia de Gal Costa para a Zahar).

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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