Van Gogh – A vida

Em 2022, a bela tradução de Denise Bottmann para a Companhia das Letras desta monumental biografia de Van Gogh completa dez anos. O minucioso trabalho de pesquisa de Steven Naifeh e Gregory White Smith, totalizando 1025 páginas mais dois encartes de imagens e extensa bibliografia, nos apresenta à figura de um homem que se desprendeu de tudo, inclusive da lucidez, para perseguir a própria arte, dentro de si e pelo mundo.

Desde criança, Vincent, o mais velho de seis irmãos, teve dificuldades em se relacionar com os pais. Era uma criança difícil. Foi mandado para um colégio interno, de onde acabou fugindo. Encaminhado para uma carreira promissora como negociante de arte, ramo de atuação de seu bem-sucedido tio (também chamado Vincent van Gogh), acumulou desafetos e foi demitido de maneira desonrosa para a família. Aliás, a questão da “honra da família” foi algo central na vida de Van Gogh, o que acabou refletindo de maneira constante na arte que produziu e na maneira como se deu essa produção. O anseio por aceitação o levou, inclusive, já que era filho de um pastor, a cogitar uma carreira de missionário nas minas de carvão da Bélgica (ele também foi expulso de lá).

Vincent sempre foi um rebelde pois não podia ser de outra maneira. Inadvertidamente, subverteu a arte do século 19, confortavelmente enfaixada em seu louvor a um estreito realismo que as classes burguesas se dispunham a consumir, e consolidou um paradigma que se estenderia por todo o século seguinte: o do artista enlouquecido, incompreendido em seu próprio tempo, prematuramente morto.

Impossível desenlaçar as vidas e destinos de Vincent e seu irmão mais novo, Theo. Através da famosa correspondência que sobreviveu aos dois, temos acesso à intimidade de seu relacionamento problemático e intenso. Theo, por mais de uma década, foi responsável pelo sustento financeiro de Vincent, que se encontrava em sua busca incansável por uma verdade artística incontestável. A maneira como Naifeh e Smith reconstituem os acontecimentos através das cartas (e também, claro, de inúmeras entrevistas e consultas a materiais disponíveis) não é exatamente lisonjeira (tenho a impressão de que a seleção de cartas que a L&PM trouxe para o público brasileiro causa uma impressão mais favorável de Vincent), mas tem um alcance profundo.

Sua morte, aos 37 anos, na cidadezinha de Auvers, a norte de Paris, continua sendo um mistério comumente simplificado com um didatismo que presume o simples suicídio de um homem atormentado. Para Naifeh e Smith, no entanto, os eventos de 27 de julho de 1890 podem ser melhor reconstituídos a partir dos depoimentos de René Secrénant, que em 1956 veio a público revelar que a arma de onde partiu o tiro fatal era na realidade sua propriedade (à época, Secrénant era um adolescente problemático que se comprazia em perseguir Vincent, pregando-lhe peças pelas ruas do povoado). Ele não chega exatamente a assumir a responsabilidade pelo crime, mas tudo leva a crer que a hipótese do suicídio é contestável.

A vida e os ideais de Vincent van Gogh são estimulantes também no sentido de provocar algumas perguntas desconfortáveis, como, por exemplo, se o bizarro mercado bilionário de obras-primas não é um grande prostíbulo para homens brancos ricos em posse de recursos ociosos e ávidos por status social. Também, por que a monomania, a obsessão, a loucura e a arte caminham juntas com tanta frequência. Podemos perguntar também, acompanhando as dificuldades financeiras que Vincent enfrentou em vida, por que os artistas em geral são tão desvalorizados se todos consomem algum tipo de arte e se hoje, mais de um século depois de sua morte, tanta gente capitaliza a partir de sua arte (nada mais corriqueiro que camisetas, capinhas de celular e canecas de cerveja estampando os célebres girassóis amarelos).

O trabalho de Naifeh e Smith é muito inspirador. Talvez algumas análises mais aprofundadas sobre as técnicas inovadoras de Van Gogh, aqui e ali, ajudariam uma leiga como eu a apreciar o processo da criação visual em contexto um pouco melhor. Os autores de fato reconstituem dias inteiros em detalhes (afinal, são 1025 páginas), mas terminam o livro com um capítulo sobre a morte de Vincent, enquanto um epílogo com algumas informações sobre como o legado foi levado adiante seria uma grata adição. A revista piauí número 184 traz algumas páginas sobre a saga de Jo van Gogh Bonger, viúva de Theo, na tarefa de convencer os críticos de arte de seu círculo a dar uma chance a Vincent; mais de trinta anos depois de sua morte e depois de muito empenho de Jo, o mundo finalmente começa a elevar Van Gogh ao panteão dos gênios visionários – o resto é história.

Obs.: Esses dias vi também o filme Loving Vincent, de Dorota Kobiela e Hugh Welchman. O longa, composto de 65.000 frames pintados a óleo, é visualmente lindo (lindíssimo!) e retoma a hipótese que Naifeh e Smith levantam para a morte de Vincent. Vale a pena dar uma conferida.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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