O professor polvo

Eu e meu pai sempre assistimos à temporada de premiações para comentar nossos favoritos e nossas impressões, compilando títulos para serem conferidos no decorrer do ano. Quando eu morava com ele, até mais ou menos meus 19 anos de idade, assistíamos a algumas cerimônias juntos – ou pelo menos ao começo delas, já que invariavelmente acontecem aos domingos, em horários impraticáveis para quem trabalha às segundas-feiras. Depois que saí de casa, o hábito de acompanhar esses eventos continuou comigo, e até hoje pago o pacote de canais com o TNT apenas para poder ver o Grammy, o Oscar e o Globo de Ouro. Mesmo por mensagens, entre janeiro e março de cada ano eu e meu pai sempre nos comunicávamos sobre as datas, sugestões, algo que tínhamos visto. Assim como a compulsão por ver cada jogo de cada Copa do Mundo e cada esporte em cada Olimpíada, eu também herdei dele esse costume de ver as festas do cinema americano com um bom snack e um copo de Coca-Cola.

Apesar de eu não ter assistido à cerimônia do Oscar este ano, nessas últimas semanas vi em várias páginas uma sugestão de documentário que já rolava na minha lista da Netflix há um tempo. O professor polvo, ganhador da estatueta de melhor documentário de 2021, com impressionantes 100% de aprovação no Rotten Tomatoes, foi o primeiro filme que vi nesta nova fase da minha vida em que não tenho mais meu pai para trocar sugestões. E, apesar de meu pai ter sido um cara mais Scorsese/De Palma, tenho certeza de que ele também teria adorado esse documentário dirigido por Pippa Ehrlich e James Reed, protagonizado por Craig Foster e um polvo inesperadamente carismático. 

Algo que aprendi de modo inequívoco nas últimas semanas é que a gentileza é um dom precioso que apenas pessoas excepcionais dominam de maneira excepcional. Meu pai era uma dessas pessoas. Ele era essencialmente bom e sua alma se comovia com arte, se arrepiava com esportes, se abria à música, se oferecia em amizade com facilidade, se fortalecia no amor e nos pequenos atos de afabilidade. Notei com muita clareza que meu pai foi meu grande professor em todas essas coisas que parecem pequenas mas que no fundo são tudo – e que eu ainda tenho muita lição de casa para fazer. Exatamente por isso foi ainda mais tocante para mim ver esse lindo documentário. 

Craig Foster, biólogo e documentarista sul-africano, mergulhou diariamente durante um ano inteiro para acompanhar de perto o cotidiano de um polvo que vivia nas águas rasas da floresta de kelp na costa sul da África. Durante esse período, documentou seus encontros e as surpreendentes técnicas de sobrevivência desse animal impressionante que é o Octopus vulgaris. Além de ser um mestre mutante do disfarce, o polvo nada com desenvoltura e velocidade, anda em terra firme, solta tinta para confundir seus predadores e pensa através de processos altamente estratégicos: é basicamente um molusco com super-poderes. O mais comovente, no entanto, é a inteligência e a capacidade de percepção desse espécime do qual Craig Foster se aproxima tão delicadamente e toca com toda a gentileza que deveria ser a regra do contato humano com o mundo natural. 

Chorei de beleza em várias parte do filme. O professor polvo atesta, de maneira deslumbrante e terna, que, num universo que abriga supernovas e buracos negros, planetas de gás e galáxias descomunais, inteiras cosmogonias e escalas de tempo incompreensíveis, ainda não existe nada mais poderoso do que uma vida tocando outra vida com o bom e velho: amor. 


Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

2 Comments

  1. Denise
    4 de maio de 2021

    Que texto lindo, Yumi! Como bióloga já queria assistir, mas depois dessa indicação fiquei com ainda mais vontade. Os animais têm uma maneira muito particular de conexão com os seres humanos, e muitos conseguem expressar o amor, sentimento que antes a ciência achava que era reservado apenas a nós, “superiores”. Fiz estágio em um laboratório que tinha um papagaio e ele se comunicava com cada pesquisador de forma diferente, era muito engraçado. Um dia eu conto essas histórias! Beijos e fique bem ❤️.

    Responder
  2. Cristina Yabiku
    6 de maio de 2021

    Que lindo!!! Quero assistir esse documentário, e sim, somos seres movidos por várias forças e sem dúvida nenhuma, o amor é a única força capaz de nos mover para a paz. Num mundo onde tantos buscam paz. Seu pai foi, é e sempre será um homem que promoveu a paz através do amor!

    Responder

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *