Livros para ler em um dia

No mês de junho fizemos uma maratona de leitura que incluiu livros para ler em um dia. Todos foram testados e aprovados! Segue aqui uma compilação dos títulos escolhidos, cada um com um breve comentário sobre a leitura. Esperamos que gostem!

A metamorfose – Franz Kafka (94 páginas)

“Certa manhã, ao acordar de sonhos agitados, ainda na cama, Gregor Samsa descobriu que tinha se transformado num inseto monstruoso.” É com essa frase que Kafka começa o nocaute em forma de novela que é A metamorfose. Para ser lida em uma tarde e incorporada para toda a vida, essa narrativa surreal sugere, entre outras coisas, que não existe amor incondicional e que viver em sociedade é ser uma peça numa engrenagem burocrática. As possíveis interpretações são infinitas (e nenhuma é agradável).

O dicionário Houaiss define “kafkiano” da seguinte maneira:”Que se assemelha à obra de Kafka, buscando expressar um ambiente de pesadelo, de irrealidade, de angústia e de absurdo; diz-se do que, no âmbito burocrático ou na civilização atual, se afasta da lógica ou da racionalidade”.

Porque vivemos um tempo verdadeiramente kafkiano (e também porque a redação pode ter escolhido de maneira totalmente aleatória), o mote proposto pela @revistapiaui para o concurso literário de maio/2020 parodia esse que é um dos mais conhecidos inícios de toda a literatura. Para ver os textos finalistas do concurso, entre os quais se encontra um nosso, acesse: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/nota-de-repudio/

Crônica de uma morte anunciada – Gabriel García Márquez (177 páginas)

García Márquez publicou Crônica de uma morte anunciada em 1981, um ano antes de ser agraciado com o Nobel. O curto romance é um dos pontos mais altos da carreira desse colombiano que produziu nada menos que Cem anos de solidão e mudou a literatura latino-americana para sempre.

A história da morte de Santiago Nasar é contada com doses concentradas dos recursos preferidos de Gabo: a ambientação no Caribe, o estilo jornalístico inconfundível, os diálogos curtos, a antecipação dos eventos com saltos no tempo. Este último elemento está, inclusive, na base do próprio livro, partindo do título: sabemos desde o início que Santiago Nasar será morto. Seremos espectadores, assim como todo o povoado, de sua caminhada até os gêmeos Pedro e Pablo Vicário, que o esperam com facões de sangrar porcos para vingar a honra da irmã.

Além do aspecto estético do livro (é um romance impecável de construção virtuosa), a história de honra e sangue de Nasar permite leituras que nos fazem refletir sobre o machismo repugnante sobre o qual estão construídas as relações nas sociedades católicas e coloniais de toda a América Latina, sem exceções. Afinal, não nos soa estranha a história da esposa devolvida em sua noite de núpcias por não ser mais virgem, ou mesmo o acerto de contas entre os machos que consideram a virgindade da irmã um valor mais alto que a vida de Nasar. Essa narrativas soam familiares a todos nós, latino-americanos, e é por essas e outras que a obra de Gabo inevitavelmente ressoa em nós.

Esta Crônica de uma morte anunciada, breve e brusca como um golpe seco, é uma leitura que pode ser feita numa tarde (talvez o seu ímpeto até exija essa leitura arrebatada), mas é uma experiência de efeitos duradouros, como todo fã de Gabo pode atestar.

A gaivota – Anton Tchekhov (107 páginas)

O Teatro de Arte de Moscou foi uma companhia fundada em 1897. Um de seus fundadores foi ninguém menos que Constantin Stanislavski, um nome super conhecido por todos que em algum momento se aventuraram pelos caminhos da arte da interpretação, seja no teatro, TV ou cinema. Suas técnicas e estilos vanguardistas são considerados grandes marcos da arte teatral não só na Rússia, mas no mundo todo.

A gaivota, peça escrita por Anton Tchekhov, foi primeiramente encenada em 1896, e não foi bem recebida pela crítica ou pelo público em geral, o que quase levou ao fim da carreira do dramaturgo. No entanto, dois anos depois a peça foi reencenada, dessa vez, sob a direção de Stanislavski e interpretada pelo Teatro de Arte de Moscou. Esse foi considerado pela crítica e pelo público, portanto, o primeiro grande sucesso da companhia!

Comédia em quatro atos com muuuitos personagens (lembre que, como os russos têm nome mais uns 3 ou 4 apelidos que não necessariamente são muito parecidos com os nomes, sempre vale a pena voltar naquela página inicial em que eles explicam quem vai participar daquele ato) e nem tanta ação, o que pode parecer estranho para uma peça. No entanto, é justamente ao retratar o cotidiano de pessoas normais na época, com seus anseios, hesitações e frustrações (tudo isso somado às técnicas inovadoras de Stanislavski) que Tchekhov se coloca entre os maiores nomes do teatro russo.

Com menos de 110 páginas, nessa edição da saudosa Cosac, é uma boa pedida para explorar esse gênero que (falando por nós) normalmente é pouco presente em nossas leituras.

A hora da estrela – Clarice Lispector (87 páginas)

Inútil tentar enquadrar o trabalho da nossa mítica Clarice. Para Benjamin Moser, ela escreveu “a maior autobiografia espiritual do século XX”. Na introdução a “Clarice, uma biografia”, publicada por Moser em 2009, ele coleta as seguintes impressões: “A escritora francesa Hélène Cixous declarou que Clarice Lispector era o que Kafka teria sido se fosse mulher ou ’se Rilke fosse uma judia brasileira nascida na Ucrânia. Se Rimbaud fosse mãe, se tivesse chegado aos cinquenta.’” Se há um consenso, ele gira em torno da ideia de que nossa grande dama pernambucana e carioca, apenas circunstancialmente ucraniana, é uma esfinge que produz enigmas profundos e uma literatura sublime.

A hora da estrela é a culminação da voz narrativa de Clarice e a confluência de todas as suas experiências humanas (já que Clarice era afinal humana, apesar dos epítetos felinos que lhe foram conferidos desde a infância): Macabéa liga sua infância no Nordeste ao Rio de Janeiro, seu pano de fundo imigrante e judeu à realidade da mulher brasileira (tão comovente e reconhecível no traço de Rodrigo S. M., atrás de quem Clarice tenta em vão se esconder), sua ideia da morte à própria morte (Clarice morreu no mesmo ano em que publicou A hora da estrela).

É um livro breve, fulminante como sua criadora, e que exige vinte, trinta, cinquenta leituras no decorrer da vida. É uma obra perfeita que nós, leitores brasileiros, temos o privilégio de poder desfrutar na língua original.

Noites brancas – Fiódor Dostoiévski (87 páginas)

Grandes autores russos, no geral, são conhecidos por seus calhamaços – O idiota, Os demônios, e claro, Irmãos Karamazov – mas, é possível mergulhar na escrita de Fiódor Dostoiévski em um dia.

Nessa breve novela de pouco mais de 70 páginas, acompanhamos o narrador, cujo nome não sabemos, em suas “andanças” (uma tradução meio média do termo francês “flâneur”, que nomeia um tipo comum nos romances do século XIX, um errante, vadio, observador) e conversas com Nástienka, uma mulher que ele conhece nas noites brancas de São Petesburgo.

As noites brancas são resultado de um fenômeno que acontece em São Petersburgo – e, ao que parece, é restrito a essa região – durante os meses de verão (junho e julho) e a madrugada fica mais clara. Essa atmosfera opaca contribui para a mesclar a linha entre sonho e vigília/lucidez. Esse é fator que se relaciona com toda estética da novela. Esta, por sua vez, é interpretada pela maioria da crítica como uma paródia de obras românticas. Nesse sentido, o tipo “sonhador” desse narrador com toda sua oratória é um jeito bem zoeiro de Dostoiévski criticar os tipos de narradores comuns da época. Então, principalmente pela graça, esse livro vale a pena!

O que tem de mais lindo que isso? – Kurt Vonnegut (154 páginas)

“O verdadeiro terror é acordar uma manhã e descobrir que sua turma do ensino médio está governando o país”.

Essa pequena edição (bem) ampliada da @radio.londres traz pra nós 15 discursos de formatura que o escritor Kurt Vonnegut proferiu entre os anos de 1978 e 1992. Neles, Vonnegut se dirige ao mais novos adultos americanos em um momento muito importante de suas vidas: o fim da universidade e o começo da carreira profissional.

Cheios de ironia, sátira e criatividade (“O que a ‘dança dos fantasmas’ dos nativos americanos e os pintores franceses que lideram o movimento cubista têm em comum” e “Meu cachorro ama todo mundo, mas não foi inspirado pela Grécia Antiga, por Roma ou pelo Renascimento” são alguns exemplos de títulos), seus discursos revelam a percepção de Vonnegut sobre as loucuras do mundo moderno.

Um livro fluido e super engraçado, com ilustrações muito boas e nessa edição que está um primor, vale a pena ser lido e revisitado várias vezes! Apesar das datas dos discursos, muitos dos temas abordados por Vonnegut são muito atuais (vide citação que começa essa breve nota). Mas sugerimos antes a leitura de algum livro de ficção de Kurt Vonnegut para aproveitar melhor o passeio por seus discursos.

Visão do térreo – Ruy Proença (103 páginas)

A poesia de Ruy Proença, paulistano formado pela USP tanto em engenharia quanto em história – combinação improvável –, é moderna e evocativa, simples e provocativa. Neste Visão do térreo, ela atinge belos momentos naquilo a que se propõe desde o título: relatar o que se vê das alturas da nossa fatal humanidade urbana.

Há concreto, há “a praia da calçada sem praia”, mas também há pássaros, “uma primavera trabalhando em cada árvore”. Emerge dessas tensões uma São Paulo reconhecível aos sentidos: “é terrível dormir com o barulho das pedras crescendo”.

Esta reunião de 48 poemas, publicada em 2007 pela Editora 34, foi uma pequena supresa que chegou até nós já há alguns anos, em um daqueles saldões que a finada Fnac fazia de vez em quando. Sem recomendações prévias, portanto, nos aventuramos por este livrinho inesperado e já retornamos a ele em algumas releituras desde então. Vale muito a espiada.

As cidades invisíveis – Italo Calvino (150 páginas)

Ao ler As cidades invisíveis, talvez nos assalte o mesmo assombro incrédulo que devem ter sentido aqueles que ouviram as histórias das viagens de Marco Polo, à época tão absurdas e distantes da realidade verificável que renderam ao relato feito a Rustichello o jocoso nome “Il milione” (algo como “O exagero”).

Italo Calvino tece um imaginário diálogo entre Polo e Kublai Khan, o imperador mongol a quem o mercador veneziano serviu por muitos anos, e o resultado é uma onírica coletânea de cidades impossíveis porém logo reconhecíveis pelo que têm de arquetipicamente urbano e fundamentalmente humano. A prosa altamente poética de Calvino confere força instigante a cada uma das pequenas peças que compõem a obra.

Talvez este não seja exatamente um livro para ler em um dia, e sim um pouquinho por dia durante muitos dias. O problema é que, ao começar, entramos num labirinto do qual é difícil sair e acabamos lendo as 150 páginas divididas em curtíssimas seções numa tacada só. Na verdade, então, talvez este seja um livro para ler e reler de diferentes maneiras em diferentes ocasiões: às vezes aos poucos, às vezes de uma tacada. Assim como as cidades dos relatos, este é um livro caleidoscópico que jamais se esgota.

A última casa de ópio – Nick Tosches (93 páginas)

“Sentar-se ao redor de uma garrafa de suco de uva azedo, falando de toques delicados de groselha-preta, fumaça de carvalho, trufas ou de qualquer outro absurdo refinado que a natureza tenha usado para enriquecer o seu sabor é ser um cafone de primeira grandeza. Porque, se há algum toque delicado a ser percebido em qualquer vinho, é provável que seja o de pesticida e esterco.”

Para condenar a cafonice do falso conhecimento, moeda corrente numa sociedade em que a “sofisticação” leva as pessoas a pagarem com gosto 35 dólares numa cebola gourmet que na verdade vale 50 centavos, Nick Tosches não se poupa de desconforto e não nos poupa do choque de um mergulho nas entranhas do mundo. Chegando de tuk tuk às maiores pocilgas de Hong Kong e Bangcoc, sempre em busca da última casa de ópio (o ópio, essa substância banida em nome de não se sabe o quê, já que a onipresença da heroína indica que não é por causa dos bons costumes e da integridade da mente humana; uma pista: o ópio vale mais dinheiro quando se torna heroína). Em 93 curtas páginas, Tosches aniquila o presente pela história e pelo absurdo: o mundo em que não se é capaz de achar uma casa de ópio é o mesmo em que a coisa mais simples é comprar uma menina de 12 anos de idade, e isso está indiretamente ligado à hipocrisia cafona que sente no aroma do vinho “um traço de pimentão escondido no cassis” mas não sente “o pesticida e o esterco antes de tudo”.

É comum que as referências ao estilo jornalístico de Tosches sejam os grandes Truman Capote e Hunter Thompson. De fato, a prosa límpida desse poeta e jornalista que já escreveu para Rolling Stone, Vanity Fair e New York Times é umas melhores coisas que você vai ler na sua vida. Infelizmente, parece que essa edição da Conrad está esgotada no Brasil, mas talvez seja possível achar a versão digitalizada na internet. Se acharem, leiam hoje.

Sejamos todos feministas (63 páginas), Para educar crianças feministas (94 páginas), O perigo de uma história única (61 páginas) – Chimamanda Ngozi Adichie

Chimamanda Ngozi Adichie é pop. Além do mainstream, a autora é sim um dos maiores nomes das literaturas africanas (chamada por alguns críticos de “a próxima Chinua Achebe” – este, por sua vez, é conhecido como o pai das literaturas africanas) e das literaturas em língua inglesa. Mulher, negra, escritora, professora, filha de sobreviventes da guerra do Biafra, Chimamanda é uma das grandes vozes de África na atualidade: escreve com força e autoridade sobre feridas – muitas das quais nunca cicatrizarão – resultadas do extenso e violento período de colonização inglesa vivido pela Nigéria.

O perigo de uma história única e Sejamos todos feministas são fruto de duas conferências homônimas feitas no TED Talk, em 2010 e 2013, respectivamente. Enquanto Para educar crianças feministas: um manifesto é resultado, na verdade, de uma carta em resposta a uma amiga de Chimamanda que estava grávida e escreveu perguntando como criar sua filha como uma feminista.

Esses três livros, apesar de curtos e rápidos de serem lidos, contêm ideias muito importantes de serem revisitadas a todo tempo, ainda mais devido a todos as ideias e comportamentos violentos e perigosos em relação a minorias sociais que têm saído do esgoto com cada vez mais força atualmente. Então, um jeito de se colocar veementemente contra qualquer tipo de violência e opressão é também dar voz a quem luta contra isso.

O martelo – Adelaide Ivánova (73 páginas)

O martelo, de Adelaide Ivánova, é também um livro para se ler em um dia. Não se engane; é um livro pesado, denso, o nome não nega.

É um livro sobre mulheres. É um livro sobre aquilo a que todas nós estamos sujeitas: violência. Na primeira parte, a saga das instâncias burocráticas e de descrédito pelas quais a mulher que foi estuprada tem que passar. Na segunda, uma relação que, se ainda existe, é para machucar.

Sem meias palavras, a poesia de Adelaide Ivánova faz barulho e contribui para libertar os corpos femininos dos julgamentos, amarras e violências aos quais são submetidos cotidianamente.

O velho e o mar – Ernest Hemingway (124 páginas)

Começamos nossa série com a sugestão de um clássico moderno que é uma das mais belas peças já produzidas pela literatura e que foi explicitamente mencionado como razão para o Nobel conferido a seu autor em 1954 (o livro é de 1952).

Ao enviar os originais de O velho e o mar para seu editor, Ernest Hemingway incluiu um bilhete dizendo: “Eu sei que esse é o melhor que eu posso escrever em toda a minha vida”. De fato, todas as virtudes do estilo enxuto e preciso de Hemingway confluem de maneira orquestral nessa curta história sobre o velho pescador Santiago e a maior luta de sua vida, que pode ser também vista como uma metáfora da luta humana sobre a terra.

Começar e terminar um livro desses em uma única tarde é como sair mais vivo de um mergulho. A delicadeza dos temas e a maestria da técnica são os inegáveis atributos dessa pequena obra-prima.

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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