A autobiografia de Alice B. Toklas

Em Paris é uma festa, Hemingway descreve Gertrude Stein como um ser excepcionalmente obstinado e vaidoso. Não se podia, por exemplo, mencionar James Joyce perto dela: “Se alguém se referisse duas vezes a Joyce, não seria convidado a voltar. Era como fazer referências elogiosas a um general na presença de outro general. Você aprende a não fazer isso na primeira vez que comete o erro. Pode-se contudo mencionar o nome de um general que tenha sido derrotado pelo general com quem se está falando. O general com quem se está falando elogiará bastante o general derrotado, e entrará gostosamente em detalhes sobre o modo como o derrotou.” (Tradução de Ênio Silveira pela Bertrand Brasil)

Não é difícil concordar com Hemingway quanto à questão da vaidade: logo no primeiro capítulo de sua autobiografia, que por uma brincadeira e uma provocação se chama A autobiografia de Alice B. Toklas, Stein se chama a si mesma de “gênio”. Pretendendo usar a capa de Toklas, sua companheira por quase 40 anos, Stein afirma, sem falsos escrúpulos: “Os três gênios de que quero falar são Gertrude Stein, Pablo Picasso e Alfred Whitehead”. De fato, muitos “gênios” aparecem nesse relato da vida em Paris no começo do século XX, nos meios artísticos que, conforme ilustrado divertidamente em Midnight in Paris, filme de Woody Allen, se nutriram dos encontros no endereço que Miss Stein mantinha na cidade e a que acorriam grandes escritores como F. Scott Fitzgerald e, é claro, o próprio Hemingway.

O mais problemático sobre A autobiografia de Alice B. Toklas é que, na verdade, através dela, nada sabemos de Toklas. Esse livro, que foi o primeiro best seller de Stein, é mais um auto-elogio de Stein que uma autobiografia de Toklas. Essa mulher fiel que se dedicou a estar nos bastidores da esposa “gênio” e que foi deixada sem herança após a morte de Stein (como seu relacionamento não tinha validade legal, os parentes de Stein se apressaram a arrolar e se apropriar dos bens de valor que as duas mantinham; Toklas viveu o resto da vida em uma situação financeiramente vulnerável. Até Hemingway, em Paris é uma festa, publicado quase duas décadas depois, se refere a Alice como “a amiga com quem vivia”) emprestou até o próprio nome às aventuras artísticas da grande Gertrude Stein. É delicado. 

De qualquer maneira, talvez as circunstâncias que cercam o livro possibilitem uma discussão sobre a legitimidade e reconhecimento dos relacionamentos homoafetivos. Que gay nunca ouviu alguém (geralmente da família) se referir ao seu cônjuge de anos como seu “amigo”? Também por isso precisamos falar sobre o tal do orgulho gay. A autobiografia de Alice B. Toklas tem, de fato, um componente corajoso: se ainda hoje é difícil para um gay viver plenamente sua vida afetiva, imagine como isso se dava na Europa dos anos 1920. Stein e Toklas foram pioneiras no estabelecimento de uma relação vista como sexualmente subversiva. Porém, também foram muito conservadoras no que diz respeito às dinâmicas assimétricas de poder internas ao relacionamento. Vemos, no mesmo relato de Hemingway, uma Toklas servil e conformada a ser o pano de fundo da vida de Stein; o livro chamado de sua “autobiografia” parece apenas confirmar essa posição.  

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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