Baixamos esse e-book no fim de semana passado, quando a editora Todavia disponibilizou-o gratuitamente para download durante dois dias (valeu, Todavia!). A leitura surpreendentemente leve de um texto repleto de informação é possível por causa de dois fatores principais: Eula Biss adota um tom muito pessoal, conversacional mesmo, para relatar suas aventuras como mãe de primeira viagem e seus esforços para cercar o filho da mais espessa camada possível de proteções; o relato na verdade parece uma conversa com uma amiga superprotetora de seu bebê. O segundo motivo é o uso de metáforas literárias em geral e a do vampiro em particular para falar sobre infecções: Drácula, de Bram Stoker, é invocado, no decorrer dos curtos capítulos desse livro de 208 páginas, como personificação das doenças que nos invadem o corpo para ilustrar de que maneira nos relacionamos com vacinas, medos, patógenos e a própria medicina ocidental.
Leitura fácil e interessante (especialmente nesses tempos de quarentena e disputas de narrativas, em que informação confiável e de qualidade vale ouro), Imunidade pode não ser um livro propriamente científico, mas é um relato real de uma mãe no fogo cruzado das informações conflitantes: vacinas podem causar autismo? Campanhas de vacinação são plots comunistas de esterilização em massa? A decisão sobre a vacinação de meu filho é algo que cabe só a mim ou é uma discussão no âmbito da saúde pública? As perguntas que Eula Biss traz à mesa são relevantes e, neste apocalíptico 2020, urgentes.

Selecionamos aqui alguns trechos:
“De todas as metáforas sugeridas nas abundantes páginas de Drácula, a doença é uma das mais óbvias. O conde chega à Inglaterra exatamente como uma doença nova podia chegar: de navio. Ele invoca hordas de ratos e seu mal infeccioso se espalha da primeira mulher que ele morde às crianças que ele alimenta à noite, sem saber o mal que está causando. O que torna Drácula particularmente aterrorizante e o que faz sua trama levar tanto tempo para se resolver é que ele é um monstro cuja monstruosidade é contagiosa.”
“Uma vez dentro de outra célula, os vírus usam-na para produzir mais de si mesmos. A metáfora de uma fábrica é usada com frequência para descrever como os vírus funcionam: eles entram numa célula e forçam seu equipamento a gerar milhares de vírus. Mas eles me parecem mais sobrenaturais do que industriais: são zumbis, ladrões de corpos, vampiros.”
“Vinte anos mais tarde, o médico do campo, Edward Jenner, extraiu o pus de uma bolha na mão de uma ordenhadora e raspou-o no braço de um menino de oito anos. O menino teve febre, mas não ficou doente. Jenner então expôs o menino à varíola, que não o infectou. Encorajado, Jenner continuou seu experimento em dezenas de outras pessoas, inclusive seu próprio filho. Em pouco tempo, o procedimento ficaria conhecido pelo termo que Jenner cunhou para a varíola bovina, “variolae vaccinae” (vacínia), derivado da palavra latina “vacca”, o animal que deixaria para sempre sua marca na vacinação.”
“A expressão ‘sistema imunológico’ foi usada pela primeira vez em 1967 por Niels Jerne. (…) O que sabemos desse sistema é assombroso. Ele começa na pele, uma barreira capaz de sintetizar substâncias bioquímicas que inibem o crescimento de certas bactérias e que contém, em suas camadas mais profundas, células que podem provocar inflamação e ingerir patógenos. Temos depois as membranas dos sistemas digestivo, respiratório e urogenital, com o seu muco de capturar patógenos, seus cílios de expulsar patógenos e suas alta concentração de células capazes de produzir os anticorpos responsáveis pela imunidade duradoura. Além dessas barreiras, o sistema circulatório transporta patógenos que estão no sangue para o baço, onde o sangue é filtrado e os anticorpos, gerados, e o sistema linfático leva os agentes patogênicos dos tecidos do corpo para os gânglios linfáticos, onde ocorre o mesmo processo – os patógenos são cercados por uma variedade de células que os ingerem, os eliminam e se lembram deles para ter uma reação mais eficiente no futuro.”