Sobre os ossos dos mortos

Olga Tokarczuk recebeu a honraria máxima da literatura – o Prêmio Nobel – em 2019, mas essa premiação foi referente ao ano de 2018. Como muitos de vocês devem saber, nesse ano, não tivemos cerimônia de entrega do prêmio. Isso aconteceu devido a denúncias de abuso sexual e corrupção por parte de membros do comitê responsável pela escolha do premiado – The Eighteen, como eles costumam se identificar. Aqui vocês podem ler uma matéria do The guardian super detalhada. É muito importante que denúncias como essas venham a público e que, de fato, sejam feitas mudanças em relação à forma como em especial as mulheres são tratadas, além de punições severas aos responsáveis por atitudes tão abomináveis.

 No entanto, o nosso foco aqui é exaltar Olga Tokarczuk, uma autora incrível, a sexta polonesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura, sendo a segunda mulher (em 1996, Wisława Szymborska recebeu o prêmio por sua obra poética).

 Olga começou sua carreira na literatura em 1989 com a publicação de um livro de poesia chamado Miasta w lustrach (Cities in Mirrors, em inglês) e seu primeiro romance Podróż ludzi księgi (The Journey of the Book-People) foi publicado em 1993. Sua única obra traduzida em português é Prowadź swój pług przez kości umarłych, que chegou ao país com o título Sobre os ossos dos mortos, e por enquanto, é a única obra dela que lemos, mas já podemos dizer: queremos mais!

Sobre os ossos dos mortos (2009) é uma história narrada por Janina Dusheiko, uma excêntrica professora de inglês que vive em um pequeno vilarejo na Polônia, perto da fronteira com a República Tcheca. É inverno – bastante rigoroso, por sinal – e há três casas habitadas na aldeia: a da sra. Dusheiko – que odeia ser chamada de Janina -, a de Esquisito, e Pé Grande (segundo a narradora, esses são os verdadeiros nomes dessas pessoas; os nomes registrados em cartório, só ficamos sabendo mais tarde), todas as outras casas são ocupadas apenas nas estações mais quentes, por isso, sra. Dusheiko é a responsável por fazer as rondas diárias e certificar-se que, quando os habitantes das casas vazias voltarem, estará tudo em perfeito estado.

Numa noite particularmente fria, uma pessoa é encontrada morta, e esse é apenas o início de muitos acontecimentos misteriosos envolvendo os membros de um clube de caça local. Abertamente contra todo tipo de exploração animal, a sra. Dusheiko rapidamente se envolve na investigação das mortes que agitaram o vilarejo. Entre uma ronda e outra, um interrogatório e outro, a narradora (juntamente com seus companheiros: Dísio, seu amigo que compartilha a paixão pelo poeta William Blake; Esquisito, seu vizinho e Boas Novas, uma vendedora do brechó local) faz reflexões acerca da existência humana, da relação entre homem, natureza e universo, com toques de astrologia e poesia (de Blake, claro).

Sobre os ossos dos mortos é um thriller daqueles que prendem a atenção, e tudo que queremos é continuar a leitura. Mas não é só isso. Esse livro é também uma reflexão séria acerca do nosso papel como humanos. É uma reflexão de como nossa sociedade é organizada sobre bases violentas, sobre sangue animal e exploração da natureza. É, portanto, leitura indispensável.

“Às vezes tenho a impressão de que vivemos num grande túmulo, com espaço para muita gente. Olhava para o mundo envolto na penumbra cinzenta, fria e desagradável. A prisão não está lá fora, mas dentro de cada um de nós. Talvez não consigamos viver sem ela.” (p. 36)

“Fiquei pensando enquanto cantava, embora nunca tenha acreditado, essencialmente, em nenhuma distribuição personalizada da Luz. Nenhum Deus tratará disso, nenhum contador celeste. Seria difícil uma pessoa aguentar tanto sofrimento, especialmente uma do tipo onisciente. Acho que desabaria sob a pressão de tamanha dor. Só se, por acaso, se munisse de alguns mecanismos de defesa, assim como o ser humano. Só uma máquina seria capaz de carregar toda a dor do mundo. Apenas uma maquinaria, simples, eficaz e justa. Mas se tudo acontecesse mecanicamente, nossas preces seriam inúteis.” (p. 42)

“- O seu humano tem uma grande responsabilidade com os animais selvagens – ajudá-los a sobreviver -, e, quanto aos domesticados, retribuir seu amor e carinho, pois eles nos dão muito mais do que recebem. E’preciso que eles vivam sua vida dignamente, acertem suas contas e e registrem seu semestre no histórico cármico – fui um animal, vivi e me alimentei; pastei em campos verdejantes, pari a cria, a aqueci com o meu próprio corpo; construí ninhos, cumpri meu papel. Quando você os mata, e eles morrem sentindo medo e terror – como esse javali cujo corpo jazia diante de mim ontem, e que permanece lá, humilhado, enlameado e coberto de sangue, transformado em carniça -, você os condena ao inferno e o mundo todo se transforma num inferno. Será que as pessoas não enxergam isso? Suas mentes não são capazes de ir além dos prazeres pequenos e egoístas? A responsabilidade do ser humano com os animais é guiá-los – nas sucessivas vidas – à libertação. Estamos todos viajando na mesma direção, da dependência à liberdade, do ritual ao livre arbítrio.” (p. 103) 

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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