Parasita

A noite de ontem foi repleta de surpresas no Dolby Theater, em Los Angeles. Ford vs Ferrari, por exemplo, faturou o mesmo número de Oscars que o hit Era uma vez em… Hollywood. 1917, indicado em 10 categorias, levou só 3 estatuetas, todas em categorias técnicas: Melhor Fotografia, Mixagem de Som e Efeitos Visuais. Joker, por sua vez, com 11 indicações, levou a já esperada premiação de Melhor Ator (e o discurso de Joaquin Phoenix foi devastador) e Melhor Trilha Original. As maiores produções da Netflix, Dois papas e O irlandês, voltaram pra casa de mãos abanando. Ao público brasileiro, a indicação de Democracia em vertigem na categoria Melhor Documentário foi um gostinho de representação mas quem brilhou mesmo foi a Coreia do Sul e sua super sensação, o longa Parasita

Dirigida por Bong Joon Ho, a comédia-suspense com 99% de aprovação no Rotten Tomatoes tem feito barulho desde que estreou no festival de Cannes, em maio de 2019, já levando a Palma de Ouro. Até a publicação deste comentário, Parasita havia arrecadado US$167 milhões no mundo todo (a título de comparação: o longa Roma, de Alfonso Cuarón, outra sensação em língua estrangeira indicada em 10 categorias em 2018, arrecadou cerca de US$5 milhões); por ser o primeiro filme na história da Academia a levar na mesma noite os prêmios de Melhor Filme Internacional (o novo nome da categoria, substituindo o antigo Melhor Filme em Língua Estrangeira – que por sua vez já tinha substituído Melhor Filme Estrangeiro) e Melhor Filme, podemos esperar uma arrecadação ainda mais expressiva no decorrer deste ano. 

Ao mesmo tempo muito bom e extremamente incômodo, o filme conta a história do encontro das famílias Kim e Park (muito simbolicamente, os dois nomes mais comuns na Coreia do Sul; algo como os “Silva” e os “Souza”) nos labirintos sociais que possibilitam a existência da pobreza extrema e da riqueza ilimitada. Os Kim vivem em um porão na periferia do que imaginamos ser Seul; os Park estão estabelecidos numa luxuosa casa que antes pertencia a um prestigioso arquiteto. A caracterização da indigência e da fortuna contrapostas é feita de maneira primorosa e pode ser considerada a melhor coisa desse filme que é, no final das contas, uma inequívoca crítica social universal. 

Desde a cena de abertura, que começa com algumas meias estendidas em frente a uma janela abaixo do nível da rua e a busca pelo Wi-Fi grátis, passando pela questão do cheiro pessoal (abordada em momentos diferentes do filme), até o final de horror puro no gramado impecável das classes abastadas, somos compelidos a refletir sobre os papéis sociais dos Kim e dos Park. Numa representação verdadeiramente bourdieusiana de habitus (algo como um ajuste de comportamento de retro-alimentação entre o indivíduo e sua classe social), notamos as diferenças de texturas e cores e práticas: se a ascensão social permite a estilização do estilo de vida, de acordo com Bourdieu, por uma questão simples de afastamento da situação de subsistência, então isso de fato se denuncia nas escolhas de Bong Joon Ho em várias camadas. A primeira delas é o espelhamento perfeito das duas famílias: o pai, a mãe, o filho, a filha. A história se desenrola sobre essa simetria e as dinâmicas opostas em cada lado da equação: enquanto de um lado os filhos dobram caixas de pizza por uns trocados, do outro as crianças são estimuladas em seu precoce talento por meio de “terapia artística”. O tom de humor do filme torna tudo ainda mais bizarro.

Não há vilões e mocinhos em Parasita. Tanto o oportunismo dos necessitados quanto a inocência dos endinheirados são justificados pelos meios onde os personagens se movem: a asfixia encardida do porão e o jardim ensolarado das despreocupações da esposa do sr. Park. A culpa mesmo é das configurações sociais que permitem tais atrocidades. Atrocidades essas que desembocam no terror puro do terceiro ato: não é o terror puro, afinal, que a extrema injustiça social promove?

Mais que a qualidade do filme, no entanto, vale a pena pensar sobre o que significa a escolha da Academia. Ao bater bilheterias bilionárias e grandes figurões de Hollywood, Parasita afirma categoricamente a globalização do cinema – pelo menos na medida em que esse cinema se apresente palatável aos gostos americanos (em seu discurso de agradecimento na categoria de Melhor Diretor, Joon Ho afirmou ter estudado muito Scorsese na escola de cinema). Ao receber o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, Bong Joon Ho disse de maneira provocadora que, assim que os americanos conseguissem transpor o obstáculo das legendas, descobririam um mundo inteiro de bom cinema lá fora (ou seja: tirem suas cabeças de seus traseiros). Curioso pensar sobre a história recente da Coreia do Sul e sua projeção combativa no capitalismo ocidental: Hyundai e Samsung são hoje a principal concorrência de Honda e Apple. Ao lado da febre do K-pop, Parasita agora vem reforçar o soft power dessa nação de 50 milhões de habitantes e nos joga um outro dilema ainda mais sutil, já que é simplesmente uma outra face de sua própria denúncia: a Coreia entra na dança dos poderosos de maneira agressiva. Quanto a nós, brasileiros, o porão da indústria cinematográfica, nos resta continuar a sonhar. 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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