“Dia a dia, com forças que iam minguando, a miséria escalavrava mais a cara sórdida, e mais fortemente os feria com a sua garra desapiedada. Só talvez por um milagre iam aguentando tanta fome, tanta sede, tanto sol.” (p, 71)
Em meados de 1929, Rachel de Queiroz, uma mulher de 19 anos nascida em Fortaleza, começa a escrever O quinze, romance que remonta o contexto histórico de uma das maiores secas já sofridas em território cearense. A publicação do romance chamou atenção dos críticos literários da época e do público em geral, principalmente pelo perfil da autora: uma jovem com 20 anos incompletos, vivendo numa fazenda no interior do Ceará. Isso porque, como seria possível alguém como Rachel ter escrito um livro tão poderoso e equilibrado como O quinze?
O romance conta a história de alguns habitantes de Quixadá, no Ceará, e como eles lutam para sobreviver ao período de estiagem de 1915. Vamos conhecendo o dia a dia na seca por meio de Conceição, a professora de escola primária que não mora em Quixadá, mas vai passar as férias com sua avó, dona Inácia, em sua fazenda. Também acompanhamos Vicente e sua família; primo distante de Conceição, não quis ser “doutor” e trabalhar na cidade. Ao contrário do irmão, concentrou todo o trabalho de sua vida em cuidar do gado da família, por isso, o sentimento de frustração em sua vida é pulsante. Somos levados a caminhar pela seca por meio da família de Chico Bento, Cordulina e seus três filhos, que, desempregados e com fome, resolvem tentar a vida em Fortaleza, mas para chegar lá, por não ter dinheiro para a passagem de trem, fazem o trajeto a pé.
Já em Fortaleza, a família consegue ficar em um dos campos de concentração (sim, nós também tivemos campos de concentração no Ceará, ou “currais do governo”, não para extermínio em massa – proposital, pelo menos – mas também com um princípio higienista, os campos serviam para isolar os “indesejados”, vitimas da seca, dos demais habitantes da região). Quem já está de volta a Fortaleza por ocasião do início das aulas é Conceição, que depois da escola, trabalha como voluntária em um desses campos e encontra a família de conhecidos de Quixadá:
“Afinal ali estavam. Foi realmente com dificuldade que os identificou, apesar de seus olhos já estarem habituados a reconhecer as criaturas através da máscara costumeira com que as disfarçava a miséria.” (p. 96)
A literatura da seca ficou bastante comum no Brasil, principalmente entre os modernistas (e pré-modernistas) como Euclides da Cunha, com Os sertões e José Américo de Almeida com A bagaceira, obra inaugural do movimento modernista brasileiro. No entanto, é com Rachel de Queiroz que essa temática adquire contornos para além da relação homem-meio, uma vez que Rachel estrapola essa relação para trabalhar profundamente a dimensão psicológica das personagens e insere ambições, frustrações e reflexões na experienciação do espaço-tempo pelas personagens.
A singularidade de O quinze também se dá no aspecto da narrativa; o uso da oralidade e a apropriação da tradição cearense pela autora se dá de modo natural, ou vestindo “roupa feita do algodão da terra” nas palavras da própria Rachel. É esse sábio aproveitamento das formas da oralidade que, segundo o crítico Davi Arrigucci Jr., abre portas para grandes nomes das gerações modernistas, como Graciliano Ramos, que publica Vida secas em 1938 e João Guimarães Rosa, que começa a publicar em 1946.
Muito da fortuna crítica escrita no período da primeira publicação de O quinze foca no fato de esta ser uma obra escrita por uma mulher ainda na sua juventude (inclusive o próprio Graciliano disse que um sujeito barbado deveria ter escrito o romance). E agora, ler essa obra – e os textos de crítica que acompanham a edição da José Olympio – nos leva a questionar o papel da mulher na literatura, e como ainda hoje conhecemos muito mais a obra de Graciliano Ramos, por exemplo (inclusive, adoro!) e muito pouco – ou nada – de Rachel de Queiroz, uma das precursoras da literatura da seca no Brasil.