O adeus perfeito de The Good Place

CONTÉM SPOILERS!

Depois de quatro anos acompanhando as peripécias de Eleanor, Michael, Janet, Chidi, Jason e Tahani pelos labirintos do pós-vida imaginado por Michael Schur, chegamos finalmente ao desfecho da sitcom mais cósmica de todos os tempos. Com 97% de aprovação no Rotten Tomatoes e nota 8.2 no IMDb, The Good Place parece chegar à series finale confirmando sua posição entre as mais queridas comédias de todos os tempos (apenas para comparar, Seinfeld tem nota 8.8 e Friends 8.9 no IMDb; no Rotten Tomatoes, esses clássicos intocáveis atingem as marcas, respectivamente, de 88% e 78%). O episódio exibido pela NBC e pela Netflix na última semana parece ter deixado os fãs da série ao mesmo tempo satisfeitos e emocionados – coisa que poucas produções maiores conseguem fazer com tal grau de concordância, dado o sempre alto nível de expectativa quanto aos desenlaces possíveis. 

Entre as idas e vindas dos personagens em suas trajetórias quase sempre imprevisíveis – sinuosas como um verdadeiro Jeremy Bearimy – e os momentos em que quase perdemos a esperança de que eles pudessem se salvar (ou mesmo de que a série soubesse para onde estava indo – alguns episódios da terceira e da quarta temporada às vezes dão a impressão de que não há mais reviravoltas possíveis), este episódio 4×13 vem para arrematar The Good Place com o toque de filosofia moral e existencial que caracteriza a própria premissa da história. Talvez esperássemos uma última grande reviravolta surpreendente, mas levando em conta o arco dos personagens, valeu a pena acompanhar cada um deles até o seu delicado fim. 

Depois de terem sido condenados à danação eterna por suas reprováveis condutas na Terra, Eleanor, Chidi, Jason e Tahani vão do inferno ao céu (literalmente) passando pelos bastidores das atividades demoníacas, pelas câmaras da juíza universal (encarnada pela hilária Maya Rudolph) e, principalmente, pelos limites do auto-conhecimento, concluindo sua heroica jornada que consiste simplesmente em salvar todas as almas do universo através da implantação de um novo sistema no pós-vida. Michael (o incrível Ted Danson), o demônio responsável por arquitetar os castigos cármicos a que nossos protagonistas seriam submetidos, vai de maquiavélico a assustador a reflexivo a, finalmente, fofo membro da gangue humana – o que inevitavelmente nos leva a refletir sobre a questão do bem ou mal absoluto. Eleanor se torna uma pessoa altruísta, Chidi consegue escapar de suas armadilhas mentais, Jason reencontra a inocência benéfica que tem dentro de si e Tahani se reconcilia com sua própria vaidade: aqui, as respostas aos questionamentos morais plantados no decorrer da série vêm na forma pós-humanista e eminentemente oriental das questões íntimas conscienciais. Não é à toa que a última cena de Chidi recorre à filosofia budista como ilustração dos caminhos da existência. 

Apesar de sabiamente passar ao largo de discussões especificamente religiosas (acho que todos sabemos o tanto de ódio que rola na internet quando se toca o terreno sagrado das grandes religiões monoteístas), a série afirma inequivocamente nas entrelinhas: o céu, o inferno e o conceito de eternidade da mitologia judaico-cristã simplesmente não fazem sentido, nem do ponto de vista lógico, nem do moral. Com essa corajosa declaração em seu centro, vem também um aproveitamento invejável dos momentos cômicos proporcionados pelo absurdo da existência e pelas peculiaridades de seus protagonistas (detalhes como o frozen yogurt no fake Good Place – “algo bom, mas não tão bom assim” – ou como o sotaque britânico de Tahani, por exemplo, ou mesmo as habilidades marciais de Janet, os eventuais insights inesperados de Jason e os deslumbramentos de Michael diante das limitações humanas): The Good Place é antes de mais nada uma série muito engraçada cujo humor em regra foge do óbvio e do escancarado, aproveitando ao máximo o talento de seus atores escalados.

Em seu conto O imortal, Jorge Luis Borges narra a incursão de Marco Flamínio Rufo, tribuno militar de uma das legiões de Roma, à Cidade dos Imortais. Nessa cidade de pesadelo, que o tribuno adivinha ter sido construída por deuses que ficaram loucos, ele testemunha o fenômeno da imortalidade em homens que haviam bebido da água de certo rio mágico. Ao invés de sábios, ele encontra um Homero reduzido à condição de animal e uma casta de homens “invulneráveis à piedade”: a alguém que caíra no fundo de uma pedreira, setenta anos se passaram antes que lançassem uma corda. Isso porque “a morte torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por se dissipar como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do casual.” Com sua reflexão final sobre a morte e a condição humana, a excepcional série de Michael Schur retoma as impressões do tribuno romano imaginado por Borges. Assim, de maneira ao mesmo tempo tocante e leve, enquanto damos adeus aos personagens, um a um, The Good Place reafirma a preciosidade da vida.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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