J. R. R. Tolkien – Uma biografia

O próprio Tolkien não era inteiramente favorável a biografias, ou, melhor dizendo, não gostava que fossem usadas como forma de crítica literária. ‘Uma das minhas opiniões mais veementes’, escreveu certa vez, ‘é de que a investigação da biografia de um autor é um abordagem inteiramente vã e falsa de suas obras.’” (p. 7)

Logo na apresentação do livro, originalmente publicado na Inglaterra em 1977, Humphrey Carpenter nos avisa sobre a aversão de Tolkien a biografias, mais especificamente ao uso das biografias como ferramenta de interpretação da obra de ficcionistas. O elemento irônico dessa forte opinião de Tolkien é que, entre tantas e tantas biografias de ficcionistas, poucas conversam tanto com o universo ficcional dos autores quanto essa do próprio Tolkien. Ele mesmo afirmava ser um hobbit: uma criatura pacata, que viveu a vida toda na Inglaterra – a maior parte de seus anos se passou nos caminhos entre sua casa e Oxford, onde estudou e depois foi professor até a aposentadoria –, e que tinha predileção por um certo tipo de comida farta e simples (aprendemos a partir do relato de Carpenter que Tolkien odiava a cozinha francesa, por exemplo) e um temperamento que o levou a ser um filólogo de carreira. Foi arrebatado para uma grande aventura de modo compulsório, bem à maneira de Bilbo e Frodo – se é que se pode chamar a Primeira Guerra Mundial de “grande aventura” –, e todo o universo da Terra Média derivou de seu envolvimento apaixonado com as palavras e seu conhecimento profundo do inglês antigo. 

A linda edição brasileira da Harper Collins, lançada no Brasil em 2018, é um objeto de colecionador até para os que não são grandes fãs de Tolkien – sua capa dura em tecido verde chama a atenção em qualquer prateleira. O texto de Carpenter, por sua vez, vai agradar de maneira particular aquele público que trata o escritor inglês com fervor de torcedor: há passagens que demonstram uma devoção desnecessária, talvez até indesejável, para um biografista. Veja por exemplo essa descrição do Tolkien pai, na página 217: “Tolkien era imensamente bondoso e compreensivo como pai, nunca se envergonhando de beijar os filhos em público, mesmo depois que se tornaram adultos, e nunca reprimindo suas demonstrações de afeto e amor.” Mais que uma biografia, a obra talvez seja um elogio de Tolkien. Não que ele não fosse um bom pai, mas essa profusão de adjetivos precedidos de advérbios nos faz refletir sobre o que significa ser “imensamente bondoso” em absoluto e também nos faz esperar, pelo menos, o relato de algum evento que ilustre tal afirmação, o que não acontece. 

Claro que, sob a colaboração e o olho pesado de Christopher Tolkien, o terceiro filho de Tolkien e o curador de sua obra, o resultado não poderia ser muito diferente. Christopher, que morreu na semana passada, em 15 de janeiro de 2020, era conhecido por dedicar milimétricos cuidados ao legado do pai, inclusive negociando direitos autorais de maneira tida por muitos como neurótica. É famosa sua reação à trilogia de Peter Jackson. Em uma entrevista ao Le Monde, em 2012, ele disse simplesmente que o filme era um “estripamento do livro”. Especialistas em matéria de Terra Média dizem que, com a morte de Christopher, mais adaptações do universo tolkieniano serão vistas na TV e no cinema, ainda que muita coisa de menor qualidade venha por aí.

Viés à parte (tarefa difícil, já que a liberdade de pesquisa é algo desejável em biografias), Tolkien – Uma biografia é uma leitura agradável e uma ótima introdução ao universo exuberante da imaginação de Tolkien. Seu rigor, teimosia, religiosidade: está tudo lá, depois que se transpõe a determinação de Humphrey Carpenter de render homenagem a esse homem que, sem dúvida alguma, foi um dos maiores escritores do mundo. 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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