“Contos são artefatos: não coisas feitas, criadas por nós (e pelas quais possamos receber créditos), mas objetos preexistentes que desencavamos.” (Prefácio ao conto Tudo é eventual, p. 215)
Esta coletânea de contos, publicada originalmente em 2002, começa com uma história baseada numa ideia que talvez seja universalmente aterrorizante: estar deitado, totalmente consciente porém paralisado, numa mesa de autópsia, sem conseguir comunicar sua condição aos médicos que empunham seus instrumentos perfurantes. A esse conto se segue o relato de um senhor que, aos 90 anos de idade, ainda se lembra de quando era criança e conversou com o diabo, um homem de terno preto e olhos flamejantes, saído das entranhas do bosque. Na sequência, acompanhamos a angústia de um vendedor solitário com um hobby excêntrico que planeja se matar num quarto de motel de beira de estrada.
Assim como Pennywise, seu palhaço macabro, Stephen King sabe como identificar os maiores medos das pessoas. A partir disso, ele usa suas muitas ferramentas de escritor (sobre as quais, inclusive, ele discorre deliciosamente em sua autobiografia literária On writing, publicada em 2000) para criar pequenos mundos onde as leis naturais se suspendem por um determinado período de tempo em que qualquer coisa pode acontecer.
As 14 peças da coletânea (cuja ordem foi sorteada pelo autor com a ajuda de cartas de baralho, conforme lemos no prefácio) compõem um painel sortido de figuras fantasmagóricas (um pistoleiro que vai parar num convento de harpias vampirescas, um rapaz que descobre conseguir matar pessoas a distância e é recrutado como um assassino, um quadro maldito que muda com o tempo e anuncia carnificinas, um maître alucinado interrompendo violentamente um almoço em que um homem discute o divórcio com a mulher que ainda ama), mas trazem também certos momentos de temática mais, digamos, sóbria. Há, por exemplo, uma história inventada com base em fatos da vida de John Dillinger, uma que se passa numa sala de tortura mas que tem um final feliz, uma sobre um casal que se divorcia por incompatibilidade de pets. A pitada de bizarro sempre está lá, mas o sobrenatural não necessariamente se escancara à maneira de 1408, o antepenúltimo conto (aquele que virou um filme com John Cusack e Samuel L. Jackson).
Mais interessante que o Stephen King produtor de terror puro, no entanto, é o Stephen King artista profissional. Ser humano de fôlego inacreditável (até no ano em que foi atropelado e quase morreu ele lançou um livro; no ano seguinte, voltou à sua média de dois por ano), King tem uma estação de rádio, escreve roteiros, dá pitacos nos livros da esposa, toca numa banda, faz participações em filmes e se aventura por todos os braços da mídia. Profissionalmente, em meio a tudo isso, ele acha tempo para escrever best-sellers que só podem ser descritos como produtos saídos de uma máquina de escrever, uma writing machine verdadeiramente asimoviana: desde sua estreia com Carrie, em 1974, pela Doubleday, o mestre do terror emplacou com precisão de cirurgião um ícone da cultura pop atrás de outro: O iluminado, Cujo, A Torre Negra, Cemitério maldito, Christine, O talismã, It e À espera de um milagre, só pra citar os clássicos inescapáveis.
O sucesso de Stephen King junto ao público e grande parte da crítica talvez se deva a esse talento excepcional de sondar a faceta mais profunda da psique a humana, o medo. Talvez, ainda, se dê simplesmente porque ele entende seu craft e treina sua mão com as duas ferramentas que recomenda incansavelmente a novos escritores: a leitura constante (em On writing, ele afirma ler pelo menos 80 livros por ano) e a prática da escrita (um de seus hábitos diários). Claro que isso parte de uma quantidade inegável de talento bruto, mas frequência e quantidade são pontos fundamentais na obra de um homem com mais de 400 publicações e 50 adaptações para TV ou cinema: imaginação exuberante com mão firme de profissional. Tudo é eventual é uma boa amostra desse universo impetuoso.