“Esses vinte e cinco homens e mulheres artificiais postos no mundo não estão se dando bem. Talvez estejamos confrontando uma condição fronteiriça, uma limitação que nos impusemos. Criamos uma máquina com inteligência e autoconsciência para jogá-la em nosso mundo imperfeito. Desenvolvidas em geral seguindo linhas racionais, benevolentes com relação aos outros seres, tais mentes logo se veem em meio a um furacão de contradições. Temos vivido com elas, e a lista nos cansa. Milhões morrendo por causa de doenças que sabemos curar. Milhões vivendo na miséria quando há recursos suficientes para satisfazer a todos. Degradamos a biosfera quando sabemos que é nosso único abrigo. Nos ameaçamos com armas nucleares quando sabemos até onde isso pode levar. Amamos as coisas vivas mas permitimos a extinção em massa de espécies. E todo o resto – genocídio, tortura, escravidão, assassinato em família, abuso sexual de crianças, mortalidade em escolas, estupro e dezenas de violências cotidianas. Vivendo em meio a esses tormentos, não nos surpreendemos quando ainda encontramos felicidade, até mesmo o amor. As mentes artificiais não são tão bem protegidas assim.” (do personagem Alan Turing para Charlie)
Nesse passado distópico, Ian McEwan (re)constrói a Inglaterra da década de 1980, em que Margaret Thatcher é a primeira-ministra do país, que está passando por um período de guerra contra a Argentina por um pedaço de terra chamado de Malvinas pelos argentinos, e ilhas Falklands pelos ingleses. O desfecho desse conflito no livro é diferente da história que conhecemos, o que faz a Inglaterra mergulhar numa crise política, econômica e social. Além disso, os Beatles estão juntos, vivos e fazendo novas músicas, e Alan Turing, o pai da computação, também está vivíssimo, feliz com o seu marido, e fortemente empenhado no desenvolvimento da inteligência artificial.
Reconhecido por muitos como o maior escritor em língua inglesa vivo, em Máquinas como eu e gente como vocês (Machines like me and people like you, no original – o que tem um pun importante para a história), Ian McEwan coloca vinte e cinco humanos artificiais vivendo entre nós. A tecnologia está tão avançada que os cientistas foram capazes de criar robôs (13 Evas e 12 Adões) fisicamente idênticos a seres humanos, e essas máquinas, com altíssimo grau de inteligência e uma autoconsciência bastante avançada, foram compradas por alguns dos mais ricos da Inglaterra, que podiam pagar mais de 80 mil libras por um exemplar.
Charlie, que não está necessariamente no grupo dos mais ricos da Inglaterra (já que vive em um pequeno apartamento longe da parte “boa” da cidade, não tem emprego fixo, carreira, ou mesmo ânimo para tentar construir uma), consegue comprar um Adão (porque as Evas já não estavam mais disponíveis) com a herança que recebeu após a morte de sua mãe. Ele – que se descobre apaixonado por Miranda, a vizinha do apartamento de cima – vê Adão como pretexto para se aproximar de Miranda, e propõe que os dois ajustem as configurações de personalidade de Adão juntos, cada um respondendo a metade das perguntas das preferências do sistema do robô sem que o outro saiba quais foram as suas respostas (semelhante a um filho, em que cada um dos progenitores transferiria uma carga genética e de personalidade).
É com esse núcleo familiar que a diferença entre “aquilo” e “ele” que é explorada por Ian McEwan. Adão alterna papéis no cotidiano desse casal, ora parece ser “ele” (um ser que, apesar de parecer claramente diferente de Charlie e Miranda, se mostra humano: erra, se arrepende, ama, aprende), ora parece ser “aquilo” (de fato uma máquina, que jamais poderá se assemelhar a um humano, uma vez que, mesmo com uma consciência do “eu” super desenvolvida, não consegue captar sutilezas das relações sociais, que parece que só a mente humana é capaz).
Nesse romance (que McEwan faz questão de dizer que não é ficção científica), o autor explora a linha tênue que separa humanos e androides, percorre questões que há muito tempo têm sido debates científicos: o que nos torna humanos? qual a relação cérebro/mente? conhecemos relativamente bem o cérebro humano, mas quais são os limites (e poderes) da mente? é possível recriar em um ser artificial o cérebro, mas e a mente? e ainda, o que é mente? Além disso, o romance de McEwan perpassa diversos temas do fracasso humano – sempre discorrendo sobre a relação homem/máquina – como corrupção, mentira, assassinato, suicídio e até mesmo pelo papel da literatura em todo esse fracasso:
“Quase tudo que li na literatura mundial descreve variedades de fracasso humano – da compreensão, da razão, da sabedoria, da solidariedade apropriada. Falhas do cognição, de honestidade, de bondade, de autoconsciência; relatos soberbos de assassinato, cobiça, estupidez, autoengano e, acima de tudo, um profundo desconhecimento dos semelhantes. Obviamente, também se mostra a generosidade, o heroísmo, a indulgência, a sabedoria, a verdade. (…) Mas quando se completar o casamento de homens e mulheres com as máquinas, essa literatura será redundante porque nos entenderemos uns aos outros bem demais.”
Máquinas como eu chegou no Brasil no finalzinho de junho pela Companhia das Letras numa edição super caprichada e parece contribuir para o sucesso de Ian McEwan. Sem dúvida, uma obra incrível, daquelas que só um grande escritor consegue escrever!