Laranja Mecânica é daquelas obras de arte que extrapolam os limites de gênero e mesmo da ficção para se tornar ícones culturais absolutos. Suas referências se espalham de maneira a serem reconhecidas por pessoas que nem tiveram contato com a obra, e o próprio título, esquisito e provocador, ecoa em regiões da cultura que nada têm a ver com filme de Kubrick ou o livro de Burgess (o que a seleção holandesa de futebol dos anos 1970 tem a ver com qualquer dessas coisas, por exemplo?).
A primeira vez que vi o filme, mais de 15 anos atrás, não gostei muito (pelo simples fato, talvez, de o filme não ser exatamente “gostável”: gosta-se pela perícia da execução, e não pelo que provoca), mas desta vez fiquei fissurada. Leva-se tempo pra deixar de sentir as náuseas (provavelmente as mesmas que o Alex sentia depois da Ludovico), ao ver a boa e velha ultraviolência.
Por isso, fui atrás de ler o roteiro do Kubrick e o livro que deu origem à película e descobri que, tão interessante quanto a vida longa desse ícone cultural (o filme de Kubrick é de 1971 e foi baseado no livro homônimo de Anthony Burgess, de 1962) é a vida da mente por trás da sufocante história protagonizada por Alex DeLarge: Burgess foi diagnosticado com um tumor no cérebro, e os médicos lhe deram menos de um ano de vida. Ele então se recolheu pra escrever um monte de livros, pensando em deixar sua esposa confortável com os direitos autorais depois de sua morte. Achei essa reação inacreditável. Mais inacreditável ainda o que aconteceu depois: o diagnóstico estava errado e Burgess não morreu (pelo menos não naquele ano: morreu apenas em 1993). Além desse evento anedótico, há muitas singularidades sobre esse inglês que era também compositor. Entre outras coisas, ele escreveu nada menos que uma peça para orquestra de uma versão de Ulisses, do Joyce. Ele era também grande fã de Borges e costumava se referir a ele como “xará” (os sobrenomes Borges e Burgess têm a mesma origem).
Burgess inventou o dialeto nadsat (um pseudo-elizabetano com palavras eslavas e uma dose de “infantilismos” na construção das sentenças) depois de uma viagem à Rússia e depois de perceber que os grupos de jovens, as tribos da época, tinham seu próprio código de comunicação. Esse dialeto é uma coisa incrivelmente criativa (e é perceptível no filme – eu adoro a voz e o jeito de falar do McDowell -, mas no livro é muito mais perturbador, porque o mergulho nas palavras não tem apoio visual). É a criação de um jeito totalmente novo de falar por meio da conjugação de duas principais estratégias: o uso de palavras e expressões estranhas ao inglês, mas de maneira integrada ao idioma (daí certa semelhança com Guimarães Rosa) e uso da informalidade estudada na narração em primeira pessoa (daí certa semelhança com Salinger).
O livro, além de tudo, é engraçado. É de uma ironia finíssima. Essa edição da Aleph, de 2004, traz um glossário e um prefácio com detalhes do processo de tradução, além de a tradução (por Fábio Fernandes, doutor em semiótica pela PUC) ser muitíssimo bem feita.
Conforme podemos ler no prefácio: “Laranja Mecânica faz parte de uma trindade distópica que coroa a ficção científica do século XX. O livro de Burgess divide com 1984, de George Orwell, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (ambos britânicos e pouco mais velhos que ele) a honra de criar um dos cenários mais apocalípticos da literatura de todos os tempos”.
Horrorshow mesmo.