“Naquela manhã invernal de domingo, Richard foi o primeiro a acordar; eram seis da manhã, ainda noite fechada. Depois de passar horas com a sensação de navegar entre o sono e a vigília, finalmente havia dormido como se tivesse sido anestesiado. Na lareira, restavam poucas brasas; a casa era um mausoléu gelado. Suas costas doíam, seu pescoço estava rígido. Alguns anos antes, quando ia acampar com seu amigo Horacio, dormia em um saco sobre a terra dura, mas já estava muito velho para passar por situações desconfortáveis. Lucía, por sua vez, aninhada ao seu lado, tinha a expressão plácida de quem descansa sobre penas. Evelyn, deitada na almofada e abrigada com seu agasalho, botas e luvas, roncava ligeiramente com Marcelo em cima dela. Richard levou alguns segundos para reconhecê-la e recordar o que aquela menina fazia em sua casa: o carro, a batida, a neve. Depois de ouvir parte da história de Evelyn, voltou a sentir o ultraje moral que antes o mobilizara a defender os imigrantes e ainda entusiasmava seu pai. Afastara-se da ação e acabara encerrado em seu mundo acadêmico, longe da dura realidade dos pobres da América Latina. Tinha certeza de que seus patrões exploravam Evalyn e talvez até mesmo a maltratassem, o que justificaria seu estado de pavor.”
Durante uma fortíssima tempestade de neve no Brooklin, Richard, um professor universitário americano, ao voltar do veterinário com seu gato número dois, bate no carro dirigido por Evelyn, uma imigrante ilegal guatemalteca, que trabalhava como cuidadora de Frankie, um menino com paralisia cerebral na casa dos Leroy, uma rica família nova iorquina.
Claramente perturbada com o acontecimento, Evelyn sai correndo sem dar maiores explicações, mas acaba ficando com o cartão de visitas de Richard, que se oferece para pagar o dano causado por ele. Na mesma noite, Evelyn chega de surpresa à casa de Richard, sem conseguir se explicar, apenas chorando muito. Como a jovem parece não falar inglês muito bem, Richard pede ajuda à Lucía, sua colega de trabalho chilena, que está trabalhando como professora visitante naquele semestre, a convite de Richard.
A união improvável desses três personagens se dá a partir daí: o desespero de Evelyn não é só pela batida (e pelo pequeno dano no carro de seus patrões); há algo de inesperado nessa história.
Para fugir de spoilers indesejados, paramos por aqui, mas já dá para ter uma ideia boa de qual o plot do livro. Nessa obra, Allende explora temas como regimes ditatoriais na América do Sul (Allende conta, por exemplo, que no período da ditadura do general Pinochet, famílias recebiam um caixote lacrado com o nome de seu ente querido; impedidos de abrir, só deveriam enterrá-lo; no entanto, muitos dos que desafiavam a ordem e rompiam os lacres, encontravam corpos de outras pessoas e, por humanidade, davam um enterro digno a esses corpos e continuavam na angustiante dúvida acerca do paradeiro de seus desaparecidos) imigração ilegal, condições de trabalho subumanas, corrupção e violência com destreza; ao mesmo tempo, coloca como contrapontos coexistentes a espiritualidade e a alteridade. Como em um bom romance, as personagens são bem construídas, e não são exatamente quem nós inicialmente achamos que seriam.
Muito além do inverno foi publicado em 2017, e lançado no Brasil no mesmo ano, pela Bertrand Brasil. É fato que não é a obra máxima de Allende, que já começou sua carreira literária com A casa dos espíritos (falamos sobre esse livro aqui), então realmente fica difícil se superar depois disso. Ainda assim, vale super a leitura!