A casa dos espíritos

“Em alguns momentos tenho a impressão de que já vivi isto e que já escrevi estas mesmas palavras, mas compreendo que não sou eu, mas outra mulher, que anotou em seus cadernos para que eu deles me servisse. Escrevo, ela escreveu, que a memória é frágil, e o transcurso de uma vida, muito breve, e tudo acontece tão depressa que não conseguimos ver a relação entre os acontecimentos, não podemos medir a consequência dos atos, acreditamos na ficção do tempo, no presente, no passado e no futuro, mas também pode ser que tudo aconteça simultaneamente, como diziam as três irmãs Mora, que eram capazes de ver no espaço os espíritos de todas as épocas. Por isso, minha avó Clara escrevia em seus cadernos para ver as coisas em sua dimensão real e driblar a sua péssima memória.”

É a partir das vozes de três gerações de mulheres da família Trueba (além de trechos em terceira pessoa e outros narrados por Esteban Trueba, patriarca da família) que A casa dos espíritos é construída. As vidas de Clara, Blanca e Alba se entrelaçam para contar a história dessa família burguesa de personagens excêntricas (Nívea, a mãe de Clara, é uma feminista, casada com Severo del Valle, um senador do Partido Liberal; Rosa, irmã de Clara, é um ser tão belo que é comparado a um anjo ou uma sereia; Clara, por sua vez, é médium desde criança. Tem também o tio Marcos, um explorador, cujo anúncio de morte aparecia periodicamente à casa dos del Valle; já Esteban Trueba, que vem a ser marido de Clara, é o símbolo da burguesia decadente que vê nos del Valle a esperança de se tornar “alguém na sociedade”, formando com Clara, mais ligada ao mundo dos espíritos do que a esse, o casal mais improvável).

A casa dos espíritos é o livro de estreia de Isabel Allende, uma das mais proeminentes vozes da literatura em espanhol na atualidade (ouso dizer: a mais, até porque, em todas as livrarias de Santiago do Chile que visitamos, o seu lançamento, Largo pétalo de mar – ainda sem tradução para o português -, está em destaque, recebendo o tratamento dado aos grandes best sellers atuais). Nessa obra, Allende, além de construir fortes personagens femininas, aborda com maestria assuntos de violência, exploração, amores e paixões, com um período turbulento na história de um país latino-americano indefinido (que por várias “coincidências” pode-se apontar que se trata do Chile).

Após a sua publicação, em 1982, Isabel Allende foi aplaudida e criticada. As críticas vieram principalmente da comparação entre a voz de Allende e a do grande escritor colombiano (vencedor de um Nobel, vale lembrar) Gabriel García Márquez. Fato é que tanto Cem anos de solidão quando A casa dos espíritos correspondem ao que conhecemos como realismo fantástico – escola em que elementos fantásticos e naturais se entrelaçam e que passado, presente e futuro se fundem em um continuum – e que é possível encontrar semelhanças entre a voz de García Márquez e a voz de Allende (principalmente entre essas duas obras, já que outras obras de Allende apresentam estilos diferentes). Mas, afinal, nas palavras da própria Allende: “todos os escritores em língua espanhola que vieram antes e depois dele são medidos em relação a seu imenso talento”.

Obs.: Quem está publicando a obra de Allende no Brasil é a Bertrand, que por alguma razão deu um tratamento “de mulherzinha” para as capas das edições. Não são edições ruins, a tradução é boa, mas, por algum motivo, a temática de Allende foi tratada como “feminina”, o que também acontece com a edição americana, mas não com a edição em espanhol que temos em nossa biblioteca (que convenhamos também não são lindas).

Obs. 2: Vale super lembrar também que A casa dos espíritos inspirou um filme com o mesmo nome, em que Clara é interpretada por ninguém menos que Meryl Streep.

Obs. 3: Ontem falamos de Neruda, e Allende abre o livro com uma citação dele. Além disso, ela fala da morte do Poeta como um símbolo de resistência à ditadura.

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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