Dom Casmurro

“Dona Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.
– Que dificuldade?
– Uma grande dificuldade.
Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.
– A gente do Pádua?
– Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque, se eles pegam em namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.”

É assim que começa a história de Bentinho, o narrador de Dom Casmurro – um dos mais notáveis livros da literatura brasileira. É com a denúncia de José Dias, o agregado da família (seja lá o que isso for), que Bento Santiago se dá conta de que não, ele não quer ser padre, e que sim, ele ama sua amiga de infância, Capitu.

O resto da história todo mundo sabe: Bentinho vai para o seminário, mas não se faz padre; sai e casa com Capitu. Os dois, depois de muito tentar, têm um filho, Ezequiel. O nome da criança é em homenagem ao melhor amigo de Bentinho, Ezequiel Escobar. E a ironia está no fato de que não só o nome, mas a aparência e os trejeitos da criança também são semelhantes ao do homenageado. Isso nos leva à acusação da traição de Capitu, já que, de acordo com o nosso narrador, sua esposa o traiu com seu melhor amigo, e por isso é indigna da relação. Bentinho, cheio de raiva, manda Capitu e Ezequiel para a Europa – a fim de abafar o falatório da sociedade, óbvio – e se torna o tal Dom Casmurro, que, já na velhice, decide escrever um livro com o objetivo de “atar as duas pontas da vida” (cap. II).

De enredo simples – pelo menos em uma leitura superficial – o debate que o livro gera cruzou o século XX inteiro (já que a obra foi publicada pela primeira vez em 1899). Mas o que faz desse livro um clássico – como os literatos gostam de dizer? Inevitavelmente, é sobretudo a voz de Machado de Assis. É com maestria que o Bruxo do Cosme Velho constrói esse grande – ouso dizer, o maior – enigma da literatura brasileira.

Durante a primeira metade do século XX, havia apenas uma chave de leitura possível para o comportamento de Capitu: culpada, traidora, mulher dissimulada de olhar oblíquo. É só na década de 1960 que uma americana, Helen Caldwell, muda a chave de leitura do romance, com The Brazilian Othelo of Machado de Assis. Nesse trabalho, Caldwell diz que é preciso ler o comportamento de Bentinho (e não necessariamente o de Capitu), já que Bentinho aparentemente não entendeu nada sobre Otelo: “E era inocente – eu vinha dizendo rua baixo –; que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu?” (cap. CXXXV). Além disso, Bento Santiago se mostra no livro todo como um narrador um tanto quanto instável, esquecido, e propenso a exageração, já que, segundo ele “o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas” (cap. LXII).

O ponto que se tenta ressaltar com tudo isso é que: é impossível decidir se Ezequiel é ou não filho de Escobar – já que a semelhança parece inegável (até mesmo reconhecida por Capitu), mas também, Capitu parecia com a mãe de Sancha, o que não necessariamente é indício de mais traições na família. Nem é possível defender com certeza a sua inocência, mas afinal, existe virtude completa?

Mais do que o traiu x não traiu de Capitu, o ponto fundamental é como o romance é construído, com o equilibro perfeito de pistas que permitem diferentes leituras. Faz todo sentido que Capitu tenha traído Bentinho (afinal, ela era muito mais mulher do que ele era homem), mas também faz todo sentido que ela não tenha (afinal a memória do narrador é como a de alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar dela nem caras nem nomes – o que nos deixa levemente desconfiados de sua precisão).

Isso é o que faz desse livro um eterno enigma (como muitos outros grandes da literatura universal: desde as dezenas de romances superpopulares de Agatha Christie e Conan Doyle até os labirintos inescapáveis de Kafka). Machado, colocando-se com maestria entre os maiores autores da literatura mundial, deixa no ar um enigma capaz de ecoar por séculos.

(Parêntesis importante para ressaltar o prazer que é ler Machado de Assim nessa edição bem linda publicada em 2018 pela editora Carambaia!)

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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