Tive que revirar toda a obra de Borges para achar um trecho que eu sabia que tinha lido em algum de seus ensaios magníficos. Recorri num primeiro reflexo àqueles que faziam referência às kennings (imagens cristalizadas em jogos de palavras, abundantes na literatura medieval escandinava), às suas aulas sobre literatura, às suas palestras sobre o ofício da escrita e, por fim, à sua História da Eternidade, onde ele fala exatamente sobre o que eu sabia que buscava. A ideia, no entanto, teimava em não vir à tona e, muito borgianamente, esgueirava-se por entre as páginas, deixava-se vislumbrar mas não se mostrava por inteiro, até o ponto de eu achar que estava maluca, atribuindo ao autor coisas que ele nunca disse, ao sabor da minha própria imaginação – à maneira de um Borges infinitamente menor.
Depois de alguns dias de busca, prestes a desanimar, eis que o trecho vem a mim, candidamente saído de um texto sobre Nathaniel Hawthorne originalmente publicado em Outras inquisições e depois reunido na Nova antologia pessoal de Borges. Com uma íntima satisfação que vinha mais da apreciação da practical joke póstuma que Borges involuntariamente me pregava do que da estima pela minha própria capacidade de referenciar meu escritor preferido, senti que finalmente podia comentar O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça, de Alberto Manguel. Segue o trecho:
“Talvez seja um erro supor que metáforas possam ser inventadas. As verdadeiras, as que formulam conexões íntimas entre uma imagem e outra, existiram desde sempre; as que ainda podemos inventar são falsas, são as que não vale a pena inventar.”
Explico em dois parágrafos o porquê de não poder comentar esse belo livro de Manguel sem recorrer a Borges:
Como falar de metáforas sobre leitores sem falar sobre Borges, o maior leitor do século XX, que dizia não se orgulhar das páginas que havia escrito (algumas, as melhores de toda a literatura, vale recordar), mas das que havia lido? Onde Manguel acha três imagens para o leitor inveterado (o viajante, a torre e a traça) Borges se encaixa como se encaixam apenas as metáforas perfeitas: Borges tramando sua Buenos Aires em cores literárias e morrendo em Genebra por opção, percorrendo séculos e continentes trancado dentro da biblioteca de seu pai, ou Borges diretor da Biblioteca Nacional, encastelado em sua fortaleza de códices, ficando cego aos poucos no que ele mesmo chamou de “um lento crepúsculo”, ou ainda Borges vivendo entre livros e para os livros, entendendo a literatura como o principal evento de sua existência.
O outro e principal motivo seria quase banal, não fossem as secretas simetrias de todo o universo borgiano: meu primeiro contato com Manguel foi um livrinho de 90 páginas singelamente chamado Com Borges. Nesse livrinho, Manguel registra, de maneira mais afetiva que meticulosa, os anos de sua adolescência em que ia à rua Maipu ler para um Borges já em avançado estado de cegueira. O alcance dessa imagem é quase mítico: Manguel, que viria a se tornar um dos grandes escritores argentinos, lendo em voz alta Kipling ou Stevenson ou Chesterton (ou qualquer desses hábitos de Borges), noite após noite, num apartamento descrito como “parado no tempo”, a esse poeta cego como Homero ou Milton (ou, ainda, como o monge Jorge de Burgos, terrível homenagem de Umberto Eco que por é, por si só, uma das imagens mais poderosas da literatura) que chegava, às vezes, a ditar um ou outro verso para que fosse escrito num pedaço de papel que seria cuidadosamente dobrado e guardado no bolso ou na carteira para posteriores lapidações. Que Manguel tenha passado quatro anos de sua vida lendo para o maior leitor de todos é justificativa suficiente para que tenha escrito um lindo livro sobre metáforas.
Essas imagens do leitor como viajante (tanto sendo o “Crusoé de poltrona” – expressão cunhada por Manguel – quanto, tendo o livro físico em mãos e visualizando o volume das páginas, podendo olhar pra trás, para a estrada percorrida, e para frente, para a estrada a percorrer), como esse recluso numa torre de marfim (o ser isolado e antissocial que é capaz e mergulhar em um objeto de papel – e o que é ler, senão “staring at a piece of dead tree and hallucinating”?) e como traças (devoradores literais de livros e colecionadores obcecados e acumuladores mórbidos?) fazem parte dessas “metáforas verdadeiras” e são exploradas de maneira muito saborosa, com doses certas de leveza e erudição, nesse livro cheio de belas ilustrações e projeto gráfico caprichado que foi publicado no Brasil pelas Edições Sesc.
Além disso, Manguel me deixou uma pergunta na cabeça: o que é ser um leitor no século XXI, quando às vezes nenhuma dessas metáforas é possível? Pode-se ler num PDF, por exemplo, sem saber quantas páginas nos restam; pode-se ler um blog ao mesmo tempo que milhares de outras pessoas também o lêem, enquanto comentamos e lemos comentários; pode-se ler em pequenos pacotes de 140 caracteres; sequer precisamos do papel, a iguaria da traça.
Quando cada vez mais leitores migram ou se adaptam às plataformas digitais, transformam-se também as metáforas possíveis.
Eu não serei a primeira recorrer à Biblioteca de Babel de Borges como uma prefiguração desse monstro imenso de fluxo de informações a que convencionamos chamar (quase carinhosamente até, se você reparar) de internet. Links e hiperlinks e salas infinitas abarrotadas de informação: Borges imaginou essa quimera muitos anos antes do primeiro computador pessoal (num formato totalmente diferente, mas usando os mesmos princípios) e certamente não veria num Kindle a mesma mágica ancestral de uma imensa biblioteca de papel e tinta. Como nós, os leitores, seremos vistos no futuro? Será que a literatura assumirá formas que mudarão o jeito como nos relacionamos com ela de maneira tão profunda que a literatura mesmo será outra coisa? Será que ela é eterna no que tem de essencial? Será que ainda poderemos imaginar a figura de um velho poeta cego guardando uma venerável coleção de volumes antigos ou será que no futuro essa representação corresponderá a um técnico de informática guardando um gigantesco servidor remoto?
Não acho que alguém tenha a pretensão de responder a essas perguntas (eu certamente não tenho), mas livros como esse de Manguel trazem imagens fascinantes para que pensemos essas “conexões íntimas entre as coisas” e, sobretudo, para que desfrutemos a literatura ainda mais, ainda mais profundamente, ainda mais apaixonadamente.